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PASQUALE CIPRO NETO
"Danço eu, dança você na dança da solidão"
Corria o tenebroso
ano de 1972. Os milicos ainda (des)mandavam no país, mas,
como não há mal que sempre dure (nem bem que nunca acabe), o
outro lado da moeda nos dava
maravilhas como o antológico
disco "A Dança da Solidão", do
delicadíssimo Paulinho da Viola.
(Por falar em delicadeza, é inevitável lembrar "Os Ombros Suportam o Mundo", de Drummond: "Alguns, achando bárbaro
o espetáculo, prefeririam [os delicados] morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida
é uma ordem. A vida apenas, sem
mistificação". Esse poema [de
"Sentimento do Mundo"] foi publicado em 1940, mas parece ter
sido escrito na semana que vem.)
Pois bem. O lado B do bolachão
de Paulinho começava com a
pungente "Dança da Solidão"
(sem o artigo "a" mesmo antes de
"dança"), em cuja letra se encontram estes versos: "Desilusão, desilusão, / Danço eu, dança você /
Na dança da solidão". Posso estar
enganado, mas acho que em 1972
o verbo "dançar" ainda não tinha o sentido que assumiu na gíria há algum tempo. Se já o tinha,
a dupla leitura (a literal e a giriesca) do verbo "dançar" parece
enriquecer ainda mais o poema.
Pois era aí que eu queria chegar. Há algum tempo, a Fuvest
elaborou uma questão a partir
deste texto: "Para se candidatar a
um emprego, o recém-formado
compete com levas de executivos
de altíssimo gabarito, desempregados. O jovem, sem experiência,
literalmente dança". A banca pedia aos candidatos que comentassem a (in)adequação do emprego do advérbio "literalmente".
Esse advérbio é da família da
palavra "letra" (do latim "littera"). "Literalmente" significa "ao
pé da letra", ou seja, usado com o
sentido literal, original. É claro
que, no texto da questão da Fuvest, o jovem não dança "literalmente", já que não se põe a bailar
quando ou porque não consegue
emprego. Na verdade, "literalmente" parece ter sido usado como um elemento de reforço.
Caro leitor, se você acha que toda essa conversa sobre "dançar"
vai desembocar na nossa deputada-dançarina, acertou! Parodiando-se a questão da Fuvest,
pode-se dizer que em "A deputada dançou no plenário" o verbo
"dançar" foi usado em seu sentido literal, mas parece que o Brasil
clama por que seu significado
passe a ser o da gíria.
Na verdade, já há quem diga
que, com aquela dança (que me
nego a classificar -gente mais
preparada do que eu já o fez de
forma impagável), a deputada
já dançou, talvez não neste mandato (ela certamente teria a seu
lado inúmeros deputados-dançarinos, que a poupariam da guilhotina), mas provavelmente no
próximo.
Mas voltemos a Drummond e a
seu atual e premonitório "Os
Ombros Suportam o Mundo".
São estes os primeiros versos do
poema: "Chega um tempo em
que não se diz mais: meu Deus. /
Tempo de absoluta depuração".
Pois é. Nada nos surpreende mais
neste circo de horrores, mas nosso
tempo é mesmo de depuração?
Ou, como diz Drummond em outro de seus antológicos poemas
("A Flor e a Náusea"), "o tempo
não chegou de completa justiça. /
O tempo é ainda de fezes, maus
poemas, alucinações e espera"? A
palavra é sua, caríssimo leitor.
Por enquanto, acho que todos
dançamos (não literalmente).
É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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