São Paulo, quinta-feira, 30 de março de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

"Danço eu, dança você na dança da solidão"

Corria o tenebroso ano de 1972. Os milicos ainda (des)mandavam no país, mas, como não há mal que sempre dure (nem bem que nunca acabe), o outro lado da moeda nos dava maravilhas como o antológico disco "A Dança da Solidão", do delicadíssimo Paulinho da Viola.
(Por falar em delicadeza, é inevitável lembrar "Os Ombros Suportam o Mundo", de Drummond: "Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam [os delicados] morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação". Esse poema [de "Sentimento do Mundo"] foi publicado em 1940, mas parece ter sido escrito na semana que vem.)
Pois bem. O lado B do bolachão de Paulinho começava com a pungente "Dança da Solidão" (sem o artigo "a" mesmo antes de "dança"), em cuja letra se encontram estes versos: "Desilusão, desilusão, / Danço eu, dança você / Na dança da solidão". Posso estar enganado, mas acho que em 1972 o verbo "dançar" ainda não tinha o sentido que assumiu na gíria há algum tempo. Se já o tinha, a dupla leitura (a literal e a giriesca) do verbo "dançar" parece enriquecer ainda mais o poema.
Pois era aí que eu queria chegar. Há algum tempo, a Fuvest elaborou uma questão a partir deste texto: "Para se candidatar a um emprego, o recém-formado compete com levas de executivos de altíssimo gabarito, desempregados. O jovem, sem experiência, literalmente dança". A banca pedia aos candidatos que comentassem a (in)adequação do emprego do advérbio "literalmente".
Esse advérbio é da família da palavra "letra" (do latim "littera"). "Literalmente" significa "ao pé da letra", ou seja, usado com o sentido literal, original. É claro que, no texto da questão da Fuvest, o jovem não dança "literalmente", já que não se põe a bailar quando ou porque não consegue emprego. Na verdade, "literalmente" parece ter sido usado como um elemento de reforço.
Caro leitor, se você acha que toda essa conversa sobre "dançar" vai desembocar na nossa deputada-dançarina, acertou! Parodiando-se a questão da Fuvest, pode-se dizer que em "A deputada dançou no plenário" o verbo "dançar" foi usado em seu sentido literal, mas parece que o Brasil clama por que seu significado passe a ser o da gíria.
Na verdade, já há quem diga que, com aquela dança (que me nego a classificar -gente mais preparada do que eu já o fez de forma impagável), a deputada já dançou, talvez não neste mandato (ela certamente teria a seu lado inúmeros deputados-dançarinos, que a poupariam da guilhotina), mas provavelmente no próximo.
Mas voltemos a Drummond e a seu atual e premonitório "Os Ombros Suportam o Mundo". São estes os primeiros versos do poema: "Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração". Pois é. Nada nos surpreende mais neste circo de horrores, mas nosso tempo é mesmo de depuração? Ou, como diz Drummond em outro de seus antológicos poemas ("A Flor e a Náusea"), "o tempo não chegou de completa justiça. / O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera"? A palavra é sua, caríssimo leitor. Por enquanto, acho que todos dançamos (não literalmente). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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