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RETRATOS DA SOLIDÃO
Pacientes com doenças graves ficam sem visitas ou aguardam até um ano pela passagem de parentes
Famílias "esquecem" idosos em hospitais
FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL
São 15h30 de uma quinta-feira,
horário de visita. Em cadeiras de
rodas, pacientes idosos atravessam sozinhos os jardins do hospital até a porta de entrada para ver
quem chega, mas ninguém vem.
Um número desconhecido de
idosos são "esquecidos" pelas famílias e amigos em todos os tipos
de unidades hospitalares e pelos
mais diversos motivos -sociais,
econômicos, conjunturas familiares -como uma briga e erros do
passado. É mais comum encontrá-los nos hospitais de retaguarda, aqueles que recebem os pacientes mais graves, onde passam
por longos períodos em tratamento e têm atenção constante.
A maior unidade de retaguarda
do país, o Hospital Geriátrico e de
Convalescentes Dom Pedro 2º, da
Santa Casa de São Paulo, com 463
pessoas internadas, calcula que só
um terço receba visitas freqüentes
-ao menos uma vez por semana,
apesar de a maioria ter família
com nome e endereço registrado.
Além disso, seguindo o Estatuto
do Idoso, o hospital no Jaçanã
(zona norte de SP) permite acompanhantes em tempo integral.
Para a maioria dos pacientes, no
entanto, a regra são visitas esporádicas, que variam de uma vez a
cada 15 dias e uma vez ao ano a
nenhuma visita. Mais de 60% dos
internos são idosos e sofrem de
problemas neurológicos, como
seqüelas de um derrame, e demências, como Alzheimer.
"É longe. Eu trabalho. São Paulo
é complicada", ouve a assistente
social Ana Paula de Souza das famílias quando telefona para falar
da ausência. "Aos domingos, dia
tradicional de visitas, há mais voluntários do que familiares", diz
ainda a assistente social.
Na ausência de pessoas conhecidas, esses funcionários tornam-se a referência. Pedro, de 60 anos,
não pode passar um dia sem ver
Ana Paula. Com seqüelas de um
derrame, está em cadeira de rodas, passa o dia passeando pelo
jardim, fala com dificuldade.
"Um dia vou te trazer um queijo
de Minas", diz Pereira a Ana Paula. Segundo ela, a família costuma
visitá-lo uma vez por ano. "Antes
do Natal", afirma ela.
Morando há 36 anos no hospital, Regino Pereira da Silva, 66,
sempre perfumado e arrumado,
desliza pelos corredores em uma
cadeira de rodas em que pode ficar deitado de bruços e empurrar
as rodas rapidamente com os braços. Vítima de uma bala perdida
quando trabalhava em uma lavoura em Goiás, ele não pode ficar sentado por causa das dores.
Mesmo assim faz cachecóis coloridos e já trabalhou na fábrica de
fraldas que levava serviços ao hospital. Regino fala sem mágoas das
poucas visitas que recebe.
"Só tenho uma irmã, os outros
me visitavam, mas faleceram. Ela
está doente, problema na coluna,
e com idade. Mora na Bahia, o dinheiro é fraco. Neste ano ela disse
que vem. Mas aqui as pessoas são
excelentes. Só tenho carinho."
"A vida em cidade grande não é
fácil, todo mundo trabalha, ninguém tem tempo, e o idoso, enquanto faz comida, cuida dos netos, é aceito. A partir do momento
que tem um AVC [derrame],
quem vai cuidar?", diz Sueli Luciano Pires, diretora técnica do
hospital. Segundo ela, a unidade
evita condenar as famílias, mas
tenta, por meio de conversas, trazê-las para mais perto e, assim,
evitar problemas como depressão, que atingem alguns dos pacientes "esquecidos". "No passado éramos criadas para cuidar das
mães. Hoje, para ser donas-de-casa, trabalhadoras e mães, só isso."
Norma Malatesta, de 80 anos, é
das raras familiares que fazem visitas diariamente ao hospital.
Acompanha a evolução da irmã
Elvira, de 81, com problemas neurológicos. "Sempre moramos
juntas. Íamos muito ao cinema."
Damaris Felipe dos Santos, 72,
talvez seja um dos casos mais antigos de esquecimento dos doentes. Nasceu com problemas congênitos e desde os 12 vive na Santa
Casa, hoje em cadeira de rodas.
Lúcida, conta que, no abandono,
construiu nova vida. Seu amor,
José dos Santos, 78, conheceu no
hospital. "Tanto homem bonito e
ela me escolheu", diz Santos. "Eu
gostei dele", afirma Damaris.
Para Milton Gorzoni, chefe da
geriatria da Santa Casa, o serviços
que permitiria melhor convívio
com a família, a assistência domiciliar gratuita, ainda é tímido.
Hoje o atendimento domiciliar,
previsto no SUS (Sistema Único
de Saúde), atinge apenas 800 pessoas no Estado de São Paulo, consideradas só a iniciativa do governo estadual. O Ministério da Saúde promete reformular a política neste ano para ampliar o alcance.
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