São Paulo, domingo, 30 de abril de 2006

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DANUZA LEÃO

Viver, a qualquer momento

De vez em quando a gente ouve -em momentos dolorosos, sobretudo- a frase solidária "sei exatamente como você está se sentindo". A vontade é dizer, e com muita raiva, "não sabe não", mas por amizade, fraternidade e uma certa preguiça, a gente finge que não ouve e passa batido.
Se seu marido te largou -e o de sua amiga também-, nem por isso ela pode saber o que você está sentindo. Pode ser raiva, ódio, dor de cotovelo, alívio, vontade de enfiar uma faca nas costas dele e até mesmo a sensação, rara, de generosidade, pensando que ele tem o direito de procurar ser feliz longe de você. As circunstâncias são sempre diferentes, e reza a sabedoria que, se esse fato desagradável te aconteceu, fuja do clube das mulheres largadas, aquelas que só têm um assunto, até arranjar outro.
Tão insuportável quanto, são as pessoas que dizem "eu conheço você muito bem". Como assim, conhece, se nem você mesma se conhece?
Você se conhece? Tem um casamento tranqüilo, filhos sensatos e não tem do que se queixar. Às vezes, quando está sozinha em casa, se permite pensar que a vida podia ser mais trepidante, como em alguns livros e filmes, e pensa: se não tivesse se casado com um rapaz tão bom, que se tornou um bom marido, como era de se prever, o que teria sido de sua vida?
Antigamente, na juventude, as mulheres não tinham as liberdades de hoje; poucas trabalhavam, morar sozinha nem pensar, e namoro era namoro -e só.
Naquele tempo, para ser livre mesmo, só fugindo de casa, o que algumas fizeram, para grande escândalo da cidade do interior onde viviam. Mas as moças daquele tempo sabiam o que era a liberdade? Quantas queriam ser livres? E livres para quê?
Quando a família se reúne aos domingos para almoçar, ela faz os pratos prediletos dos filhos, tem sempre um agrado especial para os netos, é considerada uma mãe exemplar e a avó que todos os netos gostariam de ter. A família inteira seria capaz de falar sobre ela: de sua bondade, seu desprendimento, sua generosidade, sua abnegação. Mas alguém sabe das coisas que passaram -e que às vezes ainda passam- pela sua cabeça?
Nunca teve coragem de desejar que o marido morresse, isso não. Mas muitas vezes imaginou como seria sua vida se ele desaparecesse, assim, numa mágica.
A primeira coisa que faria seria cancelar os almoços de domingo; pediria uma pizza e depois tomaria dois bons copinhos de vinho do porto, aquele que a fazia ficar um pouquinho tonta -só um pouquinho. Veria os filhos e netos, sim, mas eles que preparassem um jantar para ela, na casa deles, com os pratos de que mais gostava. E mais: sem dia marcado.
Arranjaria novas amigas, algumas desquitadas, com muitas experiências para contar, daquelas com quem não se dava porque não ficava bem, e teria o direito de dar uma boa gargalhada, coisa que talvez nunca tenha feito na vida, já que nunca ninguém lhe contou nenhuma história engraçada. Com ela só se fala de problemas, doenças, mortes.
Nesta manhã de domingo, enquanto o marido lia o jornal de pijama, ela pensou em tudo isso. E ficou imaginando: e se tivesse coragem de sair de casa e ir passear num parque, conversasse com outras pessoas tão sós como ela, depois fosse a um cinema e só voltasse quando já tivesse escurecido? Mas e o almoço familiar? Pensou que existem dias em que é imperioso transgredir, e o dia talvez fosse aquele.
Por força do hábito, ela iria pensar nas conseqüências, mas, nesse dia -o primeiro de sua longa vida-, não pensou. Saiu pela porta dos fundos e foi viver sua primeira aventura.
A polícia foi procurada, os hospitais, vasculhados, e às 11h da noite ela chegou em casa. E quando, aflitos, perguntaram o que tinha acontecido, ela disse apenas: "Fui viver".


E-mail - danuza.leao@uol.com.br



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