São Paulo, domingo, 30 de junho de 2002

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DANUZA LEÃO

Desvendando o passado

Tudo que se quer no mundo é saber o que vai acontecer no futuro; para isso, nada como uma boa cartomante. Mas será que ainda existe alguma?
Eu tive a minha, que morava num apartamento modesto, num bairro modesto, e chegava à sala passando por uma cortina de contas bem ordinária, usando um vestido trespassado -um robe, praticamente, e estampado, é claro.
O baralho era velho, sebento, e Jandira -seu nome-, muito simpática.
Embaralhava as cartas devagar, olhando dentro dos meus olhos, mandava que cortasse com a mão esquerda e a primeira coisa que dizia sempre era: "Estou vendo um homem na sua vida, mas ele está longe; vocês brigaram?". Elementar: mulher que vai à cartomante é porque as coisas não vão bem no quesito amor.
Aí, continuava: "É preciso tomar cuidado com uma mulher que está te afastando desse homem e quer te fazer mal". Se aparecesse a dama de ouros ou de copas, era uma loura; se de paus ou de espada, morena.
Cartomante é -era- coisa de mulher. O que todas, de todas as idades, queriam saber é se o homem que amavam iria voltar. E a resposta era sempre sim.
No final da consulta, pedia-se para confirmar as previsões. Jandira embaralhava as cartas de novo, pedia para cortar e separar em três montinhos -sempre com a mão esquerda; depois de um momento de suspense, dizia que sim, que ele iria voltar, mas era preciso tomar cuidado com a tal mulher. E a gente saía toda feliz.
Quando -e se- ele voltava, mais uma consulta para contar tudo -e levando um presente como homenagem à competência da profissional.
E ainda tinha as simpatias: uma delas mandava cortar uma mecha do cabelo do homem amado enquanto ele estivesse dormindo, botar num saquinho feito com um lenço roubado (dele) e usar dentro do sutiã durante 15 dias. Outra era acender duas velas e colocar bem juntinhas num pratinho com mel. Se fizesse isso todos os dias, estava garantido um futuro cheio de felicidades para você e o homem amado. Mas atenção: as velas tinham de ser acesas à meia-noite em ponto, e a simpatia só daria certo se elas queimassem até o fim. Quanta ingenuidade; quanta inocência; como era bom.
Mas o mundo mudou; vieram os psicanalistas, os astrólogos, e ninguém mais acreditou nas cartas; as cartas que -diziam- não mentem jamais. Com todo o respeito a dr. Freud, no tempo das cartomantes, a vida era mais romântica.
Hoje as pessoas olham o passado -o delas e o dos outros- para tentar compreender o presente. Os traumas da infância justificam as neuroses do presente, e nas mesas de botequim todos se sentem capazes de dar palpites de almanaque, desde o "ele sente culpa porque a mãe foi abandonada, é por isso que não tem coragem de ser feliz" a "é medo de encarar uma mulher liberada como você" e por aí vão, no embalo do chopinho, decifrando a natureza humana.
Hoje, se você for a um médico com uma dor de cabeça e perguntar se é sério, ele indaga sobre as doenças que você já teve -as suas e as da família inteira-, pede todos os exames e diz que não pode garantir nada; diagnóstico, só depois de ver os resultados. Se pergunta ao amigo mais íntimo se ele acha que você vai conseguir seja lá o que for -um trabalho, fazer uma viagem, arranjar um namorado-, ele vai dizer que não sabe, pode ser, talvez, mas não é adivinho. Ninguém quer se comprometer; ah, que saudade das cartomantes que sempre sabiam tudo, davam esperanças para tudo, diziam que tudo ia dar certo sempre, sempre.
Sem esperança a vida é muito dura.

E-mail -
danuza.leao@uol.com.br


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