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MOACYR SCLIAR
A jaqueta mágica
De repente, um homem sorridente a deteve na rua e ofereceu sua jaqueta para que se sentisse melhor
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Moda para a alma: você fica triste, sua
jaqueta o acolhe. Pesquisadores
criam roupas capazes de detectar
alterações emocionais e emitir
mensagens de conforto para o
usuário. EQUILÍBRIO, 24.AGO.10
DEPOIS DE UM CASAMENTO malsucedido, precocemente encerrado,
ela passou a viver sozinha: homem
em minha vida, nunca mais, dizia às
amigas. O tom era orgulhoso, mas a
verdade é que no fundo sentia-se
muito angustiada.
Voltava do trabalho para o pequeno apartamento em que agora
morava, comia alguma coisa e em
seguida tinha de sair: não suportava a solidão.
Ficava horas vagando pela rua,
mesmo sabendo do perigo que isso
representava, e talvez por causa do
perigo que isso representava: pouco
lhe importava o risco de assalto, pelo menos representaria algo de novo
em sua vida monótona.
E aí veio o inverno, e as noites geladas, mas mesmo assim saía para
suas caminhadas. Numa noite, a
temperatura caiu demais e ela, mal
abrigada, começou a tremer de frio.
Avançava contra o vento, encolhida, sem olhar para os lados, quando
de repente alguém a deteve: um homem jovem, sorridente, que a mirava, divertido.
"Dessa maneira você vai congelar", disse. E o que é que você tem
com isso, ela ia perguntar, não sem
irritação, mas antes que o fizesse,
ele tirou a jaqueta: "Vista isso, você
vai se sentir melhor".
A atitude poderia ser considerada imprudente, mas que lhe importava a imprudência? Ela vestiu a jaqueta. E imediatamente sentiu-se de
fato melhor, aquecida, reconfortada. Mais que isso, do capuz, e talvez
através de algum minúsculo alto-falante, vinha uma música que era
suave, romântica.
Ele riu do assombro dela e explicou: era uma jaqueta que ele trouxera de Londres, uma novidade tecnológica que continha vários dispositivos para fazer a pessoa se sentir melhor: sensores que mediam a temperatura e acionavam um sistema de
aquecimento, sistema de som. Perguntou onde ela morava, ofereceu-se para acompanhá-la.
Seria bom dizer algo como "casaram e foram felizes para sempre".
Mas não foi isso que aconteceu. Já
estavam morando juntos, cada vez
mais apaixonados, mas uma noite,
voltando do treino de futebol de salão, ele foi assaltado, reagiu, e acabou sendo morto com um tiro.
O ladrão furtara-lhe os tênis e,
aparentemente, tentara levar também a jaqueta, mas não conseguira.
É essa jaqueta, ainda com o furo da
bala, que ela usa, quando sai do
apartamento à noite, para caminhar sozinha pelas ruas desertas. O
sistema de aquecimento já não funciona, o sistema de som também
não, mas a isso a ela não importa.
O que importa é caminhar e lembrar a noite em que encontrou um
homem jovem, sorridente, um homem que, emprestando-lhe uma jaqueta, mudara, como num passe de
mágica, sua vida.
Mais: caminhando ela tem a esperança de encontrar alguém. Alguém que também seja jovem, alguém que esteja tremendo de frio. A
essa pessoa ela cederá a jaqueta
mágica, sem pedi-la de volta. E regressará para seu apartamento,
consolada, sabendo que, apesar de
tudo, algum sentido existe na vida.
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias
publicadas no jornal.
moacyr.scliar@uol.com.br
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