São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2001

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500 anos São Francisco

O rio por seus personagens

Descoberto por Américo Vespúcio, o "velho Chico" sofre com a ação do homem, e seus ribeirinhos afirmam que só podem confiar em Deus

FÁBIO EDUARDO MURAKAWA
ENVIADO ESPECIAL AO RIO SÃO FRANCISCO

Nos fundos do casebre de Belchior Zacaria da Costa, o seu Berchó, 77, o São Francisco corre ainda miúdo e cristalino. Vem cortando a mata desde a nascente, na serra da Canastra, a 5 km dali, em São Roque de Minas (MG).
O rio apenas inicia o seu percurso de 2.700 km até a foz, descoberta em 4 de outubro de 1501 pelo navegador Américo Vespúcio.
Do quintal de seu Berchó até o mar, o São Francisco atravessa cinco Estados brasileiros, gerando energia, ligando Sudeste e Nordeste e levando água até o sertão. Para o velho, no entanto, o São Francisco representa muito mais do que tudo isso.
"É aqui que eu me banho todas as manhãs, que apanho água para o café e para os animais. É o rio que me dá o sustento, moço."
Há 42 anos ele chegou a São Roque de Minas atrás do garimpo. Teve de interromper a atividade com a criação do Parque Nacional da Serra da Canastra, em 1972.
"No tempo em que eu quebrava cascalho tinha muita impureza. Agora o rio ficou bonito."
A exemplo de seu Berchó, muitos outros na região foram obrigados a abandonar o garimpo. A vida ficou mais difícil, e a maioria passou a trabalhar nas lavouras de café. Mas o sacrifício não foi suficiente para manter o rio saudável.
A menos de 15 km de sua nascente, o São Francisco recebe, sem tratamento, todo o esgoto de Vargem Bonita. O quadro se repete ao longo de todo o seu curso.
Em Bom Jesus da Lapa (BA), a contramestre de capoeira Alessandra Guimarães, 24, toma banho de sol sobre um gigantesco banco de areia no meio do rio.
A poucos metros, uma família atravessa o São Francisco a pé, e comerciantes montam quiosques onde a água costumava correr. Vendem peixe frito e refrigerante. "Dá até tristeza. Nunca vi o rio tão baixo", lamenta Alessandra.
Segundo a Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), a vazão média diminuiu de 2.300 m3/s em 2000 para 1.100 m3/ s.
O rio enfrenta a pior seca dos últimos 70 anos, mas a ação do homem agrava ainda mais o quadro.
As matas ciliares foram derrubadas para a produção de soja na Bahia. Outra parte virou carvão vegetal, utilizado pelos fornos das siderúrgicas mineiras.
Com o desmatamento ao longo de sua margem, cerca de 18 milhões de toneladas de terra são despejadas no rio anualmente.
O volume equivale a 2 milhões de caminhões. Formam-se, assim, os bancos de areia.
O desmatamento começou, no entanto, há mais de um século, quando foram trazidos dos Estados Unidos os primeiros vapores.
Durante muitas décadas, a principal fonte de renda dos ribeirinhos foi a extração da madeira nas margens do rio para alimentar as caldeiras das embarcações.
Por ironia, o Benjamin Guimarães, um dos mais tradicionais vapores do São Francisco, está parado em Pirapora (MG). Se ousasse navegar, acabaria encalhado.
Das águas do rio São Francisco saem 95% da energia elétrica consumida no Nordeste. O sistema está próximo de um colapso.
Sem chuvas, o nível dos reservatórios na região se aproxima dos 10% de sua capacidade máxima.
"Se a redução no consumo de energia na região continuar em 19%, os apagões serão evitados, pelo menos até novembro", diz o diretor de operações da Chesf, Paulo de Tarso da Costa.
Mas os reservatórios vazios já alteram a rotina dos moradores. As ruínas de Remanso, inundada na década de 70 para a construção da represa de Sobradinho, vieram à tona e viraram atração turística da cidade nova, a 7 km dali.
No caminho entre a nova Remanso e as ruínas, vêem-se duas barracas de lona e uma plantação de melancias. No local, vive a família de Enielson Soares.
A impressão é de fartura, mas o São Francisco revela ali os contrastes que marcam o país que ele atravessa. As terras são públicas, mas Enielson, a mulher e cinco filhos trabalham para um comerciante local, "seu Evanício".
Ganham, ao todo, R$ 120 por mês e sentem-se gratos porque o patrão lhes permite comer algumas melancias. Isoladas da cidade, no meio de uma lagoa seca, as crianças não vão à escola.
A vida é dura, e a mulher de Enielson, Iranilda, 25, diz que já não quer mais ter filhos. "Umas ligam (as trompas), outras tomam comprimido (pílula anticoncepcional). Eu rezo para Deus", diz.
Se geram energia, as usinas do São Francisco são apontadas como vilãs pelos pescadores. Sua construção não levou em conta a piracema, em que os peixes sobem o rio para se reproduzir.
Em Xique-Xique (BA), com o peixe escasso, o comerciante Eulálio Fernandes da Costa, 46, há 20 anos na cidade, já importa pescado da Argentina.
"Ou você importa o peixe ou compra abaixo do tamanho permitido. Mas a multa é pesada."
Ele vende o quilo do peixe argentino por R$ 3. Já o surubim do São Francisco custa R$ 4,50/kg.
A construção das usinas trouxe também transtornos para os moradores próximos à foz.
A vazão do rio está diminuindo, as cheias que fertilizavam o solo acabaram, e fenômenos estranhos começam a acontecer.
"Já estamos pegando peixes de água salgada por aqui", diz Alfredo Fernandes, 43, presidente da Colônia de Pescadores de Penedo (AL), a 42 km do mar.
Sem força, o São Francisco perde a queda-de-braço que trava com o oceano Atlântico na foz.
O último vilarejo do rio, Cabeço (SE), foi inundado pelo mar há cerca de cinco anos. Das 180 famílias que viviam ali, cerca de 80 permanecem no local. Elas fogem há cinco anos "da maré", que não pára de avançar.
Sem eletricidade, escolas, postos médicos ou igrejas por perto, os moradores de Cabeço estão abandonados à própria sorte.
"Só Deus é que está do nosso lado", diz Adriano Santos da Hora, 24, repetindo o sermão que ecoa da nascente à foz do rio.
"Deus é o único amigo que não deixa ninguém no meio da estrada", afirma seu Berchó, na outra ponta do São Francisco.


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