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500 anos São Francisco
O rio por seus personagens
Descoberto por Américo Vespúcio, o "velho Chico" sofre com a ação do
homem, e seus ribeirinhos afirmam que só podem confiar em Deus
FÁBIO EDUARDO MURAKAWA
ENVIADO ESPECIAL AO RIO SÃO FRANCISCO
Nos fundos do casebre de Belchior Zacaria da Costa, o seu Berchó, 77, o São Francisco corre ainda miúdo e cristalino. Vem cortando a mata desde a nascente, na
serra da Canastra, a 5 km dali, em
São Roque de Minas (MG).
O rio apenas inicia o seu percurso de 2.700 km até a foz, descoberta em 4 de outubro de 1501 pelo
navegador Américo Vespúcio.
Do quintal de seu Berchó até o
mar, o São Francisco atravessa
cinco Estados brasileiros, gerando energia, ligando Sudeste e
Nordeste e levando água até o sertão. Para o velho, no entanto, o
São Francisco representa muito
mais do que tudo isso.
"É aqui que eu me banho todas
as manhãs, que apanho água para
o café e para os animais. É o rio
que me dá o sustento, moço."
Há 42 anos ele chegou a São Roque de Minas atrás do garimpo.
Teve de interromper a atividade
com a criação do Parque Nacional
da Serra da Canastra, em 1972.
"No tempo em que eu quebrava
cascalho tinha muita impureza.
Agora o rio ficou bonito."
A exemplo de seu Berchó, muitos outros na região foram obrigados a abandonar o garimpo. A
vida ficou mais difícil, e a maioria
passou a trabalhar nas lavouras de
café. Mas o sacrifício não foi suficiente para manter o rio saudável.
A menos de 15 km de sua nascente, o São Francisco recebe, sem
tratamento, todo o esgoto de Vargem Bonita. O quadro se repete ao
longo de todo o seu curso.
Em Bom Jesus da Lapa (BA), a
contramestre de capoeira Alessandra Guimarães, 24, toma banho de sol sobre um gigantesco
banco de areia no meio do rio.
A poucos metros, uma família
atravessa o São Francisco a pé, e
comerciantes montam quiosques
onde a água costumava correr.
Vendem peixe frito e refrigerante.
"Dá até tristeza. Nunca vi o rio tão
baixo", lamenta Alessandra.
Segundo a Chesf (Companhia
Hidrelétrica do São Francisco), a
vazão média diminuiu de 2.300
m3/s em 2000 para 1.100 m3/ s.
O rio enfrenta a pior seca dos últimos 70 anos, mas a ação do homem agrava ainda mais o quadro.
As matas ciliares foram derrubadas para a produção de soja na
Bahia. Outra parte virou carvão
vegetal, utilizado pelos fornos das
siderúrgicas mineiras.
Com o desmatamento ao longo
de sua margem, cerca de 18 milhões de toneladas de terra são
despejadas no rio anualmente.
O volume equivale a 2 milhões
de caminhões. Formam-se, assim, os bancos de areia.
O desmatamento começou, no
entanto, há mais de um século,
quando foram trazidos dos Estados Unidos os primeiros vapores.
Durante muitas décadas, a principal fonte de renda dos ribeirinhos foi a extração da madeira
nas margens do rio para alimentar as caldeiras das embarcações.
Por ironia, o Benjamin Guimarães, um dos mais tradicionais vapores do São Francisco, está parado em Pirapora (MG). Se ousasse
navegar, acabaria encalhado.
Das águas do rio São Francisco
saem 95% da energia elétrica consumida no Nordeste. O sistema
está próximo de um colapso.
Sem chuvas, o nível dos reservatórios na região se aproxima dos
10% de sua capacidade máxima.
"Se a redução no consumo de
energia na região continuar em
19%, os apagões serão evitados,
pelo menos até novembro", diz o
diretor de operações da Chesf,
Paulo de Tarso da Costa.
Mas os reservatórios vazios já
alteram a rotina dos moradores.
As ruínas de Remanso, inundada
na década de 70 para a construção
da represa de Sobradinho, vieram
à tona e viraram atração turística
da cidade nova, a 7 km dali.
No caminho entre a nova Remanso e as ruínas, vêem-se duas
barracas de lona e uma plantação
de melancias. No local, vive a família de Enielson Soares.
A impressão é de fartura, mas o
São Francisco revela ali os contrastes que marcam o país que ele
atravessa. As terras são públicas,
mas Enielson, a mulher e cinco filhos trabalham para um comerciante local, "seu Evanício".
Ganham, ao todo, R$ 120 por
mês e sentem-se gratos porque o
patrão lhes permite comer algumas melancias. Isoladas da cidade, no meio de uma lagoa seca, as
crianças não vão à escola.
A vida é dura, e a mulher de
Enielson, Iranilda, 25, diz que já
não quer mais ter filhos. "Umas ligam (as trompas), outras tomam
comprimido (pílula anticoncepcional). Eu rezo para Deus", diz.
Se geram energia, as usinas do
São Francisco são apontadas como vilãs pelos pescadores. Sua
construção não levou em conta a
piracema, em que os peixes sobem o rio para se reproduzir.
Em Xique-Xique (BA), com o
peixe escasso, o comerciante Eulálio Fernandes da Costa, 46, há 20
anos na cidade, já importa pescado da Argentina.
"Ou você importa o peixe ou
compra abaixo do tamanho permitido. Mas a multa é pesada."
Ele vende o quilo do peixe argentino por R$ 3. Já o surubim do
São Francisco custa R$ 4,50/kg.
A construção das usinas trouxe
também transtornos para os moradores próximos à foz.
A vazão do rio está diminuindo,
as cheias que fertilizavam o solo
acabaram, e fenômenos estranhos começam a acontecer.
"Já estamos pegando peixes de
água salgada por aqui", diz Alfredo Fernandes, 43, presidente da
Colônia de Pescadores de Penedo
(AL), a 42 km do mar.
Sem força, o São Francisco perde a queda-de-braço que trava
com o oceano Atlântico na foz.
O último vilarejo do rio, Cabeço
(SE), foi inundado pelo mar há
cerca de cinco anos. Das 180 famílias que viviam ali, cerca de 80
permanecem no local. Elas fogem
há cinco anos "da maré", que não
pára de avançar.
Sem eletricidade, escolas, postos médicos ou igrejas por perto,
os moradores de Cabeço estão
abandonados à própria sorte.
"Só Deus é que está do nosso lado", diz Adriano Santos da Hora,
24, repetindo o sermão que ecoa
da nascente à foz do rio.
"Deus é o único amigo que não
deixa ninguém no meio da estrada", afirma seu Berchó, na outra
ponta do São Francisco.
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