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SÃO FRANCISCO, 500 ANOS
Com a seca, porto de Xique-Xique vira mercado no qual lavrador se contenta em faturar R$ 3
No curso do rio, sobram histórias de miséria
DO ENVIADO ESPECIAL
Ainda não são oito horas da
manhã, quando os barcos a motor começam a chegar ao porto de
Xique-Xique, na Bahia.
O rio está seco, e trabalhadores
empurram as pequenas embarcações que encalham nos bancos de
areia. A bordo das lanchas, há de
tudo um pouco: pessoas, panelas,
cabras, sacos de feijão e de milho,
vacas, motocicletas, querosene.
Aos poucos, vai se formando
um verdadeiro mercado persa às
margens do rio São Francisco.
As mercadorias são espalhadas
pelo solo rachado, forrado por
lençóis. O burburinho aumenta à
medida em que os negócios começam a esquentar.
O sol também esquenta, e os comerciantes protegem-se com
guarda-chuvas. Além do compra-e-vende, o escambo ajuda a alimentar o comércio.
O lavrador Henrique Vitor de
Souza, 46, permanece em pé. Ao
seu lado, Eulina das Neves Santana, 23, e Maria da Cruz, 55. Todos
com cordões de alho, um alho
murcho, em volta do pescoço.
Eles trabalham na roça em Brejo
do Bonfim, lugarejo no município
de Barra, no sertão baiano.
"A seca castigou, a lavoura não
deu nada, e até o patrão está em
dificuldade", diz Henrique.
Desesperados, resolveram comprar um pouco do alho do vizinho
para vendê-lo em Xique-Xique.
Caminharam três quilômetros a
pé e viajaram outras três horas de
barco para chegar até lá.
O lucro, diz Maria da Cruz, é garantido. "Dá para fazer uns R$ 3
para cada um de nós", calcula.
A quantia parece pequena:
"Mas não é muito pouco?".
"O senhor sabe que tem oito
dias que eu não vejo um centavo
na minha mão?", diz a lavradora.
A poucos metros do porto, há
outro centro comercial, onde funciona o mercado de pescados. O
movimento e o calor são intensos,
e as moscas são muitas em volta
dos peixes que são descamados
no chão ou em pias.
Há também ali pequenos restaurantes, que servem "pratos
executivos". Na fachada de um
deles, o cartaz de pano anuncia
passagens para São Paulo. Dois
ônibus lotados deixam a cidade
todos os dias.
Assistindo a esse cenário, estão
Bernardino dos Santos Nascimento, 51, Bento Nogueira da Silva, 42, e José Rosa da Silva, 47.
Sentados na sombra, com malas
e sacos de roupa ao seu redor, estão suados e parecem exaustos.
Acabam de chegar à cidade.
Bernardino, Bento e José trabalham na lavoura de feijão em Irecê, também dizimada pela seca.
Com a produção toda perdida,
partiram para Xique-Xique em
busca de trabalho. Pretendem
participar da construção de casas.
"Deixei a família só com farinha
para comer", diz José Rosa, que
tem mulher e dez filhos.
Bernardino, oito filhos, e Bento,
cinco filhos, o acompanharam
durante a viagem. Foram necessários três dias e três noites, pegando carona na beira da estrada, para chegar a Xique-Xique.
"Tudo o que comemos até agora foi uma farofinha. Foi o que nos
manteve de pé", diz Bernardino.
Pobreza
O São Francisco atravessa algumas das regiões mais carentes do
Brasil. Assim, histórias de pobreza e tragédias pessoais seguem o
curso do rio.
O mercado municipal de Manga, na divisa de Minas Gerais com
a Bahia, anda às moscas, mas a comerciante Iraci Franco, 43, não
reclama da falta de fregueses.
"O movimento maior aqui é do
dia 1º ao dia 18, quando os aposentados recebem", explica.
Em uma cidade sem indústrias
ou um comércio forte, são as pensões pagas pelo INSS que fazem
girar a economia.
Natural de Manga, ela está de
volta à cidade após uma passagem traumática por Ribeirão Preto, no interior paulista. A filha Rafaela, cinco anos, presenciou duas
chacinas na favela do Simioni ,
onde morava a família.
Iraci e o marido, Nabor, decidiram voltar no início do ano para
Manga, levando o filho Marcos
Túlio, 11 anos, e a menina.
Uma vez instalados, o marido,
caminhoneiro, foi a Ribeirão para
acertar as contas com uma transportadora para a qual prestava
serviço. Não voltou mais.
Segundo Iraci, Nabor acabou
morto por traficantes na favela.
Sob ameaça, ela não pôde ver o
enterro do marido.
Na outra margem do rio, na vizinha Matias Cardoso, um caminhão despeja cerca de 50 trabalhadores rurais que aguardam a
balsa para Manga.
"O trabalho na roça é bom, mas
a gente sofre muito", afirma a
bóia-fria Maria Catarina de Almeida, 43 anos.
Mãe solteira, ela sustenta os sete
filhos. Recebe R$ 7 por dia, mas só
tem o emprego assegurado por 12
dias, até o fim da colheita do feijão. Maria Catarina faz as contas e
vê que só tem R$ 84 garantidos
para chegar ao final do mês.
Ela tem consciência de que o dinheiro é pouco, mas não costuma
se queixar nem gosta de pensar
muito no assunto.
"Se eu ficar matutando muito e
não for trabalhar, não coloco a comida em casa", afirma a bóia-fria.
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