São Paulo, domingo, 30 de setembro de 2001

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SÃO FRANCISCO, 500 ANOS

Com a seca, porto de Xique-Xique vira mercado no qual lavrador se contenta em faturar R$ 3

No curso do rio, sobram histórias de miséria

DO ENVIADO ESPECIAL

Ainda não são oito horas da manhã, quando os barcos a motor começam a chegar ao porto de Xique-Xique, na Bahia.
O rio está seco, e trabalhadores empurram as pequenas embarcações que encalham nos bancos de areia. A bordo das lanchas, há de tudo um pouco: pessoas, panelas, cabras, sacos de feijão e de milho, vacas, motocicletas, querosene.
Aos poucos, vai se formando um verdadeiro mercado persa às margens do rio São Francisco.
As mercadorias são espalhadas pelo solo rachado, forrado por lençóis. O burburinho aumenta à medida em que os negócios começam a esquentar.
O sol também esquenta, e os comerciantes protegem-se com guarda-chuvas. Além do compra-e-vende, o escambo ajuda a alimentar o comércio.
O lavrador Henrique Vitor de Souza, 46, permanece em pé. Ao seu lado, Eulina das Neves Santana, 23, e Maria da Cruz, 55. Todos com cordões de alho, um alho murcho, em volta do pescoço.
Eles trabalham na roça em Brejo do Bonfim, lugarejo no município de Barra, no sertão baiano.
"A seca castigou, a lavoura não deu nada, e até o patrão está em dificuldade", diz Henrique.
Desesperados, resolveram comprar um pouco do alho do vizinho para vendê-lo em Xique-Xique. Caminharam três quilômetros a pé e viajaram outras três horas de barco para chegar até lá.
O lucro, diz Maria da Cruz, é garantido. "Dá para fazer uns R$ 3 para cada um de nós", calcula.
A quantia parece pequena: "Mas não é muito pouco?".
"O senhor sabe que tem oito dias que eu não vejo um centavo na minha mão?", diz a lavradora.
A poucos metros do porto, há outro centro comercial, onde funciona o mercado de pescados. O movimento e o calor são intensos, e as moscas são muitas em volta dos peixes que são descamados no chão ou em pias.
Há também ali pequenos restaurantes, que servem "pratos executivos". Na fachada de um deles, o cartaz de pano anuncia passagens para São Paulo. Dois ônibus lotados deixam a cidade todos os dias.
Assistindo a esse cenário, estão Bernardino dos Santos Nascimento, 51, Bento Nogueira da Silva, 42, e José Rosa da Silva, 47.
Sentados na sombra, com malas e sacos de roupa ao seu redor, estão suados e parecem exaustos. Acabam de chegar à cidade.
Bernardino, Bento e José trabalham na lavoura de feijão em Irecê, também dizimada pela seca.
Com a produção toda perdida, partiram para Xique-Xique em busca de trabalho. Pretendem participar da construção de casas.
"Deixei a família só com farinha para comer", diz José Rosa, que tem mulher e dez filhos.
Bernardino, oito filhos, e Bento, cinco filhos, o acompanharam durante a viagem. Foram necessários três dias e três noites, pegando carona na beira da estrada, para chegar a Xique-Xique.
"Tudo o que comemos até agora foi uma farofinha. Foi o que nos manteve de pé", diz Bernardino.

Pobreza
O São Francisco atravessa algumas das regiões mais carentes do Brasil. Assim, histórias de pobreza e tragédias pessoais seguem o curso do rio.
O mercado municipal de Manga, na divisa de Minas Gerais com a Bahia, anda às moscas, mas a comerciante Iraci Franco, 43, não reclama da falta de fregueses.
"O movimento maior aqui é do dia 1º ao dia 18, quando os aposentados recebem", explica.
Em uma cidade sem indústrias ou um comércio forte, são as pensões pagas pelo INSS que fazem girar a economia.
Natural de Manga, ela está de volta à cidade após uma passagem traumática por Ribeirão Preto, no interior paulista. A filha Rafaela, cinco anos, presenciou duas chacinas na favela do Simioni , onde morava a família.
Iraci e o marido, Nabor, decidiram voltar no início do ano para Manga, levando o filho Marcos Túlio, 11 anos, e a menina.
Uma vez instalados, o marido, caminhoneiro, foi a Ribeirão para acertar as contas com uma transportadora para a qual prestava serviço. Não voltou mais.
Segundo Iraci, Nabor acabou morto por traficantes na favela. Sob ameaça, ela não pôde ver o enterro do marido.
Na outra margem do rio, na vizinha Matias Cardoso, um caminhão despeja cerca de 50 trabalhadores rurais que aguardam a balsa para Manga.
"O trabalho na roça é bom, mas a gente sofre muito", afirma a bóia-fria Maria Catarina de Almeida, 43 anos.
Mãe solteira, ela sustenta os sete filhos. Recebe R$ 7 por dia, mas só tem o emprego assegurado por 12 dias, até o fim da colheita do feijão. Maria Catarina faz as contas e vê que só tem R$ 84 garantidos para chegar ao final do mês.
Ela tem consciência de que o dinheiro é pouco, mas não costuma se queixar nem gosta de pensar muito no assunto.
"Se eu ficar matutando muito e não for trabalhar, não coloco a comida em casa", afirma a bóia-fria.


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