São Paulo, quinta-feira, 30 de setembro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"A Justiça Eleitoral já o deu ganho de causa"

Há quase dois anos, escrevi a respeito desta frase, veiculada (diversas vezes no mesmo dia) numa das mais importantes emissoras de rádio do país: "Bush assina resolução que o permite atacar o Iraque". Na última terça-feira, outra de nossas importantes emissoras de rádio veiculou (também mais de uma vez durante o dia) esta: "O candidato afirma que a Justiça Eleitoral já o deu ganho de causa".
Que há em comum entre essas duas frases -e tantas outras semelhantes, cada vez mais comuns nos jornais, no rádio e na TV? No mínimo, a revelação de que alguns jornalistas empregam mal os pronomes oblíquos "o" e "lhe".
No padrão culto da língua, os pronomes "o" e "lhe" têm papel distinto: o "o" substitui termo que funciona como complemento verbal direto ("Faz tempo que não vejo seu pai" = "Faz tempo que não o vejo"); o "lhe" substitui termo que funciona como complemento indireto ("Faz tempo que prometi isso a seu pai" = "Faz tempo que lhe prometi isso").
O problema da frase veiculada nesta semana é semelhante ao que ocorre na que trata das maléficas intenções de Bush: o "o" foi empregado no lugar do "lhe" ("Bush assina resolução que lhe permite atacar o Iraque"; "O candidato afirma que a Justiça Eleitoral já lhe deu ganho de causa").
No primeiro caso, permite-se algo a alguém ("A resolução permite a Bush atacar" = "A resolução lhe permite atacar"); no segundo, dá-se algo a alguém ("A Justiça Eleitoral deu ao candidato" = "A Justiça Eleitoral lhe deu").
Posto isso, passemos para a nossa tradicional "investigação" sobre o porquê desses desvios. É mais do que evidente que, na língua oral, o oblíquo "o" é um moribundo. Quantas vezes por dia dizemos ou ouvimos "Faz tempo que não o vejo", "Vejo-o todos os dias", "Encontrei-o na esquina" etc.? Arrisco-me a dizer que...
Nenhuma, certo? Na língua do dia-a-dia, o "o" dos exemplos vistos é substituído por "ele" ("Faz tempo que não vejo ele"; "Vejo ele todos os dias"; "Encontrei ele...").
Também é fato (já analisado e comentado aqui diversas vezes) que, na oralidade de diversas regiões do Brasil, o pronome "lhe" é usado como complemento direto ("Faz tempo que não lhe vejo"; "Eu lhe esperei muito tempo").
Até aí, nenhum problema. Como diz o eminente professor Evanildo Bechara, o importante é ser poliglota na mesma língua, o que, no caso que estamos discutindo, consiste em dominar não só o emprego coloquial dos pronomes oblíquos (processo que, de resto, ocorre naturalmente), mas também -e sobretudo, em se tratando de quem usa os meios de comunicação- o formal.
O que acabo de afirmar vai ao encontro (ao encontro, e não de encontro) do que pensam as bancas examinadoras dos mais importantes vestibulares do país. Basta ver o que se pede nas provas de português da Vunesp, da Fuvest, da FGV, da PUC etc.
Nessas provas, são comuns as questões que pedem aos candidatos que identifiquem as marcas típicas da linguagem oral, que substituam o oral pelo formal etc. Nessas questões, o emprego dos pronomes é assunto freqüente.
Posso estar enganado, mas os casos analisados nesta coluna parecem revelar monoglotismo, isto é, a falta de contato com as diversas variedades da língua. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br


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