São Paulo, sábado, 30 de novembro de 2002

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LETRAS JURÍDICAS

Greve dos ônibus e direito ao xixi

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Na tarde de quarta-feira, quase 24 horas depois do acordo que pôs término à greve dos ônibus, o vendedor lutava para chegar até a firma na qual trabalha há muitos anos. Homem de certa idade, sentia a pressão da bexiga, ansioso por um sanitário. Os ônibus bloqueavam o trânsito ou estavam encostados no meio-fio, com pneus deliberadamente esvaziados. Impediam a retirada deles, quase um dia após o fim da paralisação.
Com o desespero crescente, o vendedor cogitou até encostar discretamente no carro e se aliviar. Hesitou seriamente. Lembrava-se de que isso poderia ser considerado ato obsceno, o que seria crime ou contravenção, não tinha bem certeza. Mas tinha certeza de uma coisa: seu direito estava sendo violado, porque grevistas e empresas de ônibus, para imporem o movimento, violavam o direito dele, à saúde, à exigência corporal, cada vez mais desesperada. Sabia também que as autoridades ditas competentes (evidentemente incompetentes, por não impedirem o bloqueio nem o desfazerem com rapidez) desrespeitavam seu direito, pela inércia.
A convicção de que todo direito termina onde começa o do outro foi por água abaixo, com perdão da lembrança infeliz em face do caso angustiante do vendedor. A função precípua da União, do Estado e do município consiste em resguardar a cidadania, permitindo-lhes seu exercício regular, mas encontrou o vigoroso desmentido da realidade.
Do ponto de vista da lei, independentemente de parecerem razoáveis as reivindicações dos motoristas e das empresas, os responsáveis pela garantia do direito de ir e vir, de cada cidadão, fracassaram. Os motoristas, ao bloquearem ruas, perturbaram milhões de pessoas e, ao esvaziarem os pneus dos veículos, excederam os limites razoáveis do movimento, desrespeitando o povo da cidade ao qual devem garantir o transporte coletivo, sobretudo dos mais pobres. Estenderam os efeitos danosos sobre todos, indistintamente, atingindo a economia da cidade, a indústria e o comércio.
Do mesmo ponto de vista, quanto ao município, houve esquecimento de sua missão de preservar a essencialidade dos transportes urbanos (artigo 30, inciso 5º da Constituição), para sua organização e prestação. A falta de providências urgentes para o impedimento do bloqueio das ruas (com a intervenção conjunta do Estado e do município) e para a rapidez do desbloqueio mostrou que as autoridades não usaram sequer os recursos mínimos da inteligência humana.
O inciso 68 do artigo 5º da Carta Magna permite a concessão de habeas corpus sempre que alguém sofra ou se ache, por ilegalidade ou abuso do poder, ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção. A administração pública mostrou-se imprevidente, nos níveis estadual e municipal, viabilizando a ilegalidade e o abuso dos grevistas. Houve ineficiência do poder público no cumprimento de sua missão constitucional. Aparentemente, os interesses políticos, para tirar proveito dos efeitos do movimento, excederam ou substituíram o interesse em garantir o melhor para a população.
No simplório e humano exemplo do vendedor e de sua bexiga dilatada pelo não-uso, sacrificou-se a saúde, a paz de espírito de um cidadão, ofendendo direitos que, naqueles momentos de angústia, eram superiores a todos os demais que lhe poderiam ser contrapostos.


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