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LETRAS JURÍDICAS
Greve dos ônibus e direito ao xixi
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
Na tarde de quarta-feira,
quase 24 horas depois do
acordo que pôs término à greve
dos ônibus, o vendedor lutava para chegar até a firma na qual trabalha há muitos anos. Homem de
certa idade, sentia a pressão da
bexiga, ansioso por um sanitário.
Os ônibus bloqueavam o trânsito
ou estavam encostados no meio-fio, com pneus deliberadamente
esvaziados. Impediam a retirada
deles, quase um dia após o fim da
paralisação.
Com o desespero crescente, o
vendedor cogitou até encostar
discretamente no carro e se aliviar. Hesitou seriamente. Lembrava-se de que isso poderia ser
considerado ato obsceno, o que
seria crime ou contravenção, não
tinha bem certeza. Mas tinha certeza de uma coisa: seu direito estava sendo violado, porque grevistas e empresas de ônibus, para
imporem o movimento, violavam
o direito dele, à saúde, à exigência
corporal, cada vez mais desesperada. Sabia também que as autoridades ditas competentes (evidentemente incompetentes, por
não impedirem o bloqueio nem o
desfazerem com rapidez) desrespeitavam seu direito, pela inércia.
A convicção de que todo direito
termina onde começa o do outro
foi por água abaixo, com perdão
da lembrança infeliz em face do
caso angustiante do vendedor. A
função precípua da União, do Estado e do município consiste em
resguardar a cidadania, permitindo-lhes seu exercício regular,
mas encontrou o vigoroso desmentido da realidade.
Do ponto de vista da lei, independentemente de parecerem razoáveis as reivindicações dos motoristas e das empresas, os responsáveis pela garantia do direito de
ir e vir, de cada cidadão, fracassaram. Os motoristas, ao bloquearem ruas, perturbaram milhões
de pessoas e, ao esvaziarem os
pneus dos veículos, excederam os
limites razoáveis do movimento,
desrespeitando o povo da cidade
ao qual devem garantir o transporte coletivo, sobretudo dos mais
pobres. Estenderam os efeitos danosos sobre todos, indistintamente, atingindo a economia da cidade, a indústria e o comércio.
Do mesmo ponto de vista,
quanto ao município, houve esquecimento de sua missão de preservar a essencialidade dos transportes urbanos (artigo 30, inciso
5º da Constituição), para sua organização e prestação. A falta de
providências urgentes para o impedimento do bloqueio das ruas
(com a intervenção conjunta do
Estado e do município) e para a
rapidez do desbloqueio mostrou
que as autoridades não usaram
sequer os recursos mínimos da inteligência humana.
O inciso 68 do artigo 5º da Carta Magna permite a concessão de
habeas corpus sempre que alguém sofra ou se ache, por ilegalidade ou abuso do poder, ameaçado de sofrer violência ou coação
em sua liberdade de locomoção.
A administração pública mostrou-se imprevidente, nos níveis
estadual e municipal, viabilizando a ilegalidade e o abuso dos grevistas. Houve ineficiência do poder público no cumprimento de
sua missão constitucional. Aparentemente, os interesses políticos, para tirar proveito dos efeitos
do movimento, excederam ou
substituíram o interesse em garantir o melhor para a população.
No simplório e humano exemplo do vendedor e de sua bexiga
dilatada pelo não-uso, sacrificou-se a saúde, a paz de espírito de um
cidadão, ofendendo direitos que,
naqueles momentos de angústia,
eram superiores a todos os demais que lhe poderiam ser contrapostos.
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