São Paulo, domingo, 30 de novembro de 2008

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GILBERTO DIMENSTEIN

O prazer dos fotógrafos cegos


Na falta da visão, eles se orientavam pelo tato e olfato para buscar o melhor enquadramento para as fotos


UM GRUPO DE OITO deficientes visuais, todos de bengala, caminhava em meio ao burburinho do Mercado Municipal de São Paulo à procura de um ângulo para registrar a profusão de cores espalhadas nas frutas, legumes e verduras. Na falta da visão, eles se orientavam pelo tato e olfato para buscar o melhor enquadramento.
À frente dessa aventura sensorial está João Kulcsár, um engenheiro-mecânico que abandonou a profissão para se dedicar ao que ele chama de "alfabetização visual". Iniciou suas experiências colocando máquinas de fotografar nas mãos de crianças de rua do centro de São Paulo. À frente de João, existe um professor de história que, nos tempos do cursinho pré-vestibular, o encantou para as questões sociais brasileiras e, sem saber, o inspirou a trocar a engenharia pela fotografia. Nessa troca, acabou em um dos mais férteis programas de inovações educacionais, chamado de Projeto Zero, em Harvard, onde descobriu que qualquer um poderia aprender nas mais estranhas situações.
O resultado dessa teia de influência estava imperceptível por trás da exposição lançada na semana passada, com as imagens tiradas pelos deficientes visuais, intitulada "Percepção do Visível" . Como se consegue ir tão longe, a ponto de um cego se sentir habilitado a tirar fotos? Nessa resposta está certamente um, entre tantos, dos segredos do alto desempenho profissional e acadêmico.

 


Uma pista para essa questão foi dada, na semana passada, pelo mais importante brasileiro que investiga o funcionamento dos cérebros. Suas suas descobertas -ele fez um macaco movimentar um jogo de computador sem as mãos- são consideradas uma das grandes contribuições atuais da neurociência para ajudar as pessoas vítimas de paralisia a se locomover. Conversando com um grupo de estudantes, Miguel Nicolelis disse: "Sou pago para ser criança". Assim ele explicava a uma silenciosa platéia, ao apresentar o livro, feito com Drauzio Varella, chamado "Prazer em Conhecer" o livro é a transcrição de uma conversa em que eles falavam sobre como aprenderam o que sabem. Nicolelis transformou os segredos do cérebro em sua paixão e hoje ajuda crianças do Nordeste a se encantar pelas ciências. Drauzio mergulha com a mesma intensidade na bioprospecção da Amazônia com que mergulhou na vida do Carandiru, já desativado, ou nas pesquisas sobre a Aids -por causa da força dos veículos de comunicação em que trabalha, combinado com o gosto de ensinar, ele é o mais importante educador de saúde de toda a história do Brasil.
 


Para chegar aonde chegaram, não bastou só a vontade de desvendar mistérios ou terem estudado em boas escolas -assim como não bastava o interesse para que os cegos tivessem uma improvável câmara fotográfica na mão. Nicolelis e Drauzio contam que houve pessoas fundamentais que deram um rumo às suas curiosidades é como se fossem chaves que deram a partida do motor. Os dois apenas reforçam os depoimentos que venho colhendo, inicialmente em parceria com a Fundação Carlos Chagas, de pessoas que se destacaram em suas atividades. Entre outros, estão na lista Maurício de Souza, Adib Jatene, Ziraldo, Fernanda Montenegro, Nando Reis até gente que saiu da periferia e ficou célebre como Seu Jorge ou Rappin Hood. Todos têm uma história para contar de alguém que os ajudou a moldar sua curiosidade -Gabriel Pensador detestava escrever até que conheceu uma professora de português; Esmeralda Ortiz descobriu, na rua, a poesia e deixou o consumo e o tráfico de crack para entrar na faculdade e escrever livros.
 


Se talvez exista aqui uma pista sobre o alto desempenho profissional de determinadas pessoas, certamente há uma explicação sobre a dificuldade dos pobres em ter prazer em aprender -raramente eles encontram em suas casas e escolas seres guiados pela paixão do mistério, que coloquem asas na curiosidade. Na maioria das vezes, se deparam com professores cansados, derrotados. Inverte-se o efeito dos fotógrafos cegos indivíduos sem problema de visão não conseguem enxergar.
 


PS: Coloquei em meu site (www.dimenstein.com.br) fotos da exposição dos cegos, além de algumas gravações que fiz com personalidades que se destacaram em suas carreiras.

gdimen@uol.com.br


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