São Paulo, segunda-feira, 30 de novembro de 2009

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MOACYR SCLIAR

Latifúndio virtual


Ele colocou ali vaquinhas, e cabritinhas, e porquinhos, e um pomar. Logo era um grande latifundiário


 


Dispara o número de "fazendeiros virtuais" no Brasil, diz Ibope. O Farmville, game social, no qual o jogador torna-se um "fazendeiro", teve 608 mil acessos no Facebook em outubro. Folha Online
Fazendeiro do Ar - Carlos Drummond de Andrade, título de livro

NASCIDO e criado numa pequena fazenda no interior de São Paulo, ele vivia muito mal na grande cidade, para onde viera ainda adolescente, em busca de oportunidades de trabalho.
Fora bem sucedido, abrira uma pequena, mas movimentada, gráfica e não tinha problemas de dinheiro. Vivia com a esposa num confortável apartamento, trocava de carro todo ano, viajava regularmente.
Mas sentia falta do campo, da fazendinha de sua infância, das vaquinhas, das cabritinhas, dos porquinhos, do pomar... Claro, poderia comprar um sítio, como tantos o fazem. Seria, contudo, uma coisa artificial, sem falar na incomodação: problemas com o caseiro, impostos... Não, não queria sítio. E não sabia o que fazer. Foi então que um amigo lhe falou do Farmville. E aquilo de imediato lhe pareceu a salvação. Uma fazenda virtual, era disso que precisava: a vida rural em imaginação, sem as complicações da realidade.
Sem demora, e como milhares de outros, entrou no Farmville. Criou seu avatar (avatar: gostou dessa palavra) de fazendeiro e começou a frequentar a propriedade. Que de início não tinha nada: mas ele colocou ali vaquinhas, e cabritinhas, e porquinhos, e um pomar de árvores frutíferas e máquinas agrícolas (máquinas, sim: apesar de tudo era moderno, confiava no agronegócio).
Ao mesmo tempo aprendeu a especular no mercado de commodities, de modo que lá pelas tantas estava ganhando muito dinheiro. Virtual, claro, mas que ele usou para comprar mais e mais terras. Logo era um grande latifundiário. E seu entusiasmo crescia diariamente.
Mas isso teve um preço. Cansada de ver o marido sentado o tempo todo diante do computador, a esposa começou a reclamar. As brigas se sucediam e um dia ela fez a mala e foi embora.
O que a ele não importou muito: a mulher era um tipo essencialmente urbano, nunca compreenderia sua paixão pela terra. Mas a empresa também começou a ir mal, e lá pelas tantas ele foi a falência. O que, de novo, não o afetou. Seu negócio agora era a fazenda.
Atualmente passa quase todo o tempo em casa, cuidando de sua propriedade. Que ficou absolutamente gigantesca; ele já nem sabe mais quanta terra tem. Milagres dos games, naturalmente, mas nem por isso ele vibra menos.
Ah, sim, tem um sonho. E um temor. O sonho: quer encontrar (na tela) a mulher de seus sonhos, uma bela fazendeira, ambiciosa e resoluta como ele próprio. Os dois se associarão, os dois se casarão, os dois se tornarão os maiores proprietários rurais do mundo. E poderiam ser felizes para sempre, não fosse o temor.
O temor: em seus pesadelos ele vê um dia a fazenda ser invadida por um grupo de gente estranha, gente que se instala em barracas, e que coloca ali um cartaz: "A fazenda é virtual. A ocupação é real." Uma eventualidade para a qual, tem de admitir, não está preparado.
Já obteve o manual do jogo, já o leu de cabo a rabo. Nada é mencionado a respeito. A vida, mesmo virtual, tem os seus enigmas.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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