São Paulo, domingo, 31 de março de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DANUZA LEÃO

Hay otros

Quando o telefone toca e a secretária diz que seu patrão quer falar com você, qual o primeiro (e único) pensamento que te ocorre? "É a demissão" -claro. Depois da conversa, ótima, você volta a fita, raciocina e se dá conta de que, se fosse para te demitir, ele mandaria outra pessoa. Elementar, mas não adianta: todo mundo é inseguro, mesmo aqueles que dão a impressão de serem os mais seguros do mundo.
Só se é seguro com as coisas que tanto faz; mas, quando você olha aquele vestido maravilhoso na vitrine, não compra, mas fica pensando nele sem parar e resolve voltar no dia seguinte, não consegue dormir, pensando que, quando chegar à loja ele já terá sido comprado. E quando o objeto do seu desejo é muito importante, mas muito importante mesmo, você vai pensar que talvez não consiga chegar lá porque o trânsito pode estar interrompido, que a proprietária pode ter morrido e por isso a loja vai estar fechada, esse tipo de coisa.
Quando encontra o apartamento dos seus sonhos, enquanto o despachante está examinando a documentação, são três tranquilizantes por dia. É claro que a cidade inteira, o universo inteiro só quer uma coisa: aquele mesmo apartamento. E sendo assim, alguém vai chegar e oferecer o dobro do preço sem se importar se a papelada está ou não em ordem, e você vai ficar sem ele, claro. Ele, o único apartamento do mundo.
Já quando você resolve vender o seu, por mais maravilhoso que seja, uma certeza você tem: ninguém, nin-guém, vai se interessar por ele. Não importa que seja de frente para o mar e tenha uma vista esplendorosa, varanda e ar-condicionado central e que o preço esteja mais do que justo. Mentalmente você já se prepara para fazer um desconto -10% ou 20%, o que quiserem, o que oferecerem; num momento de total insegurança, você chega a pensar em doar o imóvel para uma instituição de caridade -se alguma delas quiser, o que não é certo.
Os paranóicos de carteirinha vão mais longe: basta que o telefone toque para que eles estremeçam, com medo de uma má notícia. E se tocar de madrugada, aí é tragédia certa. E existem também aqueles que estão com a vida ótima, tudo em cima, todo mundo com saúde, os amigos bem de vida e passam o tempo se perguntando quanto tempo aquilo vai durar. Ninguém é feliz para sempre; por que ele seria? E se tiver uma doença grave? Doença não avisa, e 50% da população com mais de 85 anos sofre do mal de Alzheimer. Ele tem 42, mas um dia vai ter 85 - isso se viver até lá. E quando isso acontecer, quem vai cuidar dele?
E quando telefonam do laboratório para dar o resultado do exame de sangue? E quando o namorado te deixa?
Homens e mulheres deixados, dos 15 aos cem anos, nesse momento pensam exatamente a mesma coisa: nunca mais vou arranjar outro/outra. Não adianta nada que você seja linda, inteligente, charmosa, interessante. Sabe o que é nunca mais? Pois é: nunca mais. E a coragem para se levantar da cama de
manhã? Se não tivesse de trabalhar, ficava deitada o dia inteiro, bem vaga, se achando o lixo da humanidade. Aliás, ela merece: nunca foi uma boa filha, uma boa mãe nem uma boa amiga e está apenas colhendo o que plantou. E se no lugar de dedicar tanto tempo aos prazeres da vida tivesse se engajado a sério num projeto político, o país não estaria do jeito que está. A culpa de tudo é dela, claro.
Não há nenhum exagero em nada que você leu; todas as pessoas são assim.
Mas existem pessoas como a sábia Maria Felix, que, num belo documentário passado na televisão em sua homenagem, declarou que nunca sofreu por um homem, porque nessa hora sempre pensou: "Hay otros".
"Hay otros" -e isso vale para quase tudo.



E-mail -
danuza.leao@uol.com.br




Texto Anterior: Funasa diz que é cedo para fazer projeções
Próximo Texto: Há 50 anos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.