São Paulo, quarta-feira, 31 de março de 2004

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URBANIDADE

Paisagem mutilada

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

No domingo passado , quando viu homens da prefeitura aproximando-se ameaçadoramente, com motosserras em punho, do frondoso fícus localizado diante de seu apartamento, a artista Giselda Leirner, de 75 anos, entrou em desespero. Desceu correndo e, arquejando, implorou-lhes que aguardassem. Telefonou para repartições públicas à procura de uma salvação. Ninguém atendia. "Parecia um pesadelo." Assistiu, impotente, lágrimas no rosto, ao melancólico espetáculo: as folhas iam desaparecendo ao som da serra elétrica.
A paisagem de sua janela, na rua Rio de Janeiro, em Higienópolis, tinha ficado mais triste. A copa do fícus fora extirpada, restou um tronco quase sem folhas. Era, em menos de 15 dias, o segundo ataque a uma árvore em frente ao edifício onde mora. "Adorava ver aquela exuberância verde, era como se fizesse parte da minha casa."
O culto da estética sempre fez parte da vida de Giselda. Ela é irmã de Nelson Leirner, um dos expoentes da arte contemporânea brasileira, e filha de Felícia, escultora mundialmente reconhecida. Assim como as artes plásticas, a intimidade com a natureza a acompanha desde os tempos de menina, quando morava no Bom Retiro. Bastava dar uns passos e chegava ao Jardim da Luz, cenário em que, entre brincadeiras e fantasias, cultivou a paixão pelas árvores.
Adulta, montou um ateliê na serra da Cantareira, onde, além de pintar seus quadros, plantava os mais diversos tipos de árvore. "Sei o que é podar e sei o que é mutilar. O que a prefeitura fez foi mutilação. E isso é uma irresponsabilidade", acusa. A prefeitura se defende alegando ter sido chamada por um morador incomodado com as folhas que entravam pelo seu apartamento.
Giselda conseguiu, porém, uma pequena vitória. Grudou no tronco do fícus uma folha de papel, uma espécie de manifesto, em que teceu críticas ao que considerou um ato de brutalidade ecológica. Ajudou a criar um clima de revolta e a chamar a atenção da mídia -afinal, a região é tombada e mexer numa árvore exige uma série de autorizações. Com esse singelo protesto, tornou-se, na semana passada, o principal assunto de Higienópolis. "Quem sabe, da próxima vez, eles pensam duas vezes."


E-mail - gdimen@uol.com.br


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