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LETRAS JURÍDICAS
A ilusão da fidelidade partidária
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
Fidelidade, na condição
de gênero, é qualidade daquele que faz jus à confiança que
lhe é atribuída por outra ou outras pessoas ou que cumpre os
compromissos assumidos. A fidelidade partidária é espécie muito
particular e gera situações que a
crise do PT também submeteu à
avaliação jurídica. Nela, as principais alternativas para o petista
são duas: deve ser fiel à disciplina
definida no estatuto partidário e
nas decisões dos órgãos superiores
da agremiação ou pode preferir
princípios defendidos historicamente pelo petismo, quando
aquelas e estes sejam contraditórios. Ambas as alternativas envolvem o direito dos chamados "radicais" de discordarem da maioria, opinando e votando segundo
sua consciência, e o direito da direção do partido de caracterizar a
infidelidade partidária,
punindo-os.
A lei brasileira permite subproduto espúrio da infidelidade, na
habitual revoada para os partidos que alcançam o poder. Aliás,
o governo petista, para assegurar
o controle do Legislativo, tem estimulado a revoada para o ninho
de sua maioria, fazendo com que,
de repente, políticos passem da
oposição para a situação, como se
isso fosse a coisa mais natural do
mundo. A Constituição dá a regra geral. Assegura a livre formação dos partidos políticos no artigo 17, assim como sua fusão, incorporação e extinção, desde que
resguardem a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana. A
partir daí, vale tudo. No espaço
exclusivo de cada agremiação
partidária, predomina a disciplina interna desde que respeitados
os direitos invioláveis à plena defesa e ao contraditório.
Façamos uma interrupção para
discutir se a imposição da fidelidade partidária seria um bem ou
um mal. Para chegar à luz, temos
de verificar o que tem acontecido
na política brasileira. O leitor sabe dos hábitos dos políticos que
trocam de partido como o homem
troca de camisa. É estranho, mas
o eleitor tende a não mostrar
aborrecimento por isso. Falta a
tradição de partidos inspirados
em sólidos preceitos programáticos. O eleitorado aceita estatutos
partidários incongruentes, com
definições gerais, cuja aplicação
varia ao sabor das circunstâncias.
O PT oposicionista, desde a redemocratização, manteve perfil rigoroso, não se furtando de definições segundo a boa ética política.
O PT governo imita o presidente
Fernando Henrique Cardoso ao
dizer: não leiam nem ouçam o
que os petistas disseram no
passado.
O drama do conflito entre os
"radicais" (cujo grupo foi sendo
esvaziado lentamente pelos que
se atemorizaram com a pressão
do alto) e os líderes do PT encontra solução na lei, apesar de não
confundível com a ética. A legislação vigente, da Constituição às
instruções da Justiça Eleitoral, faz
predominar a vontade da maioria que dirige cada partido. Do
ponto de vista estritamente legal,
a alta direção do PT está com
a razão.
Do que me lembre, a mais antiga submissão aos princípios da fidelidade legal vem da lei dominante nos tempos do feudalismo.
Consistia no dever, imposto ao
rendeiro ou vassalo, de prestar
serviços e ser obediente ao seu
castelão e, principalmente, de se
manter fiel a ele. Naqueles tempos, o nobre feudal tinha poderes,
a rigor, ilimitados, mas, ainda assim, o preceito fundamental observado pelo rendeiro ou vassalo,
sem discussão, consistia em ser
sempre digno da confiança de seu
senhor. Nem a força de antes nem
a maioria de hoje parecem capazes de preservar os melhores princípios quando predomine a urgência dos interesses imediatos.
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