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São Paulo, sábado, 31 de maio de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

A ilusão da fidelidade partidária

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

Fidelidade, na condição de gênero, é qualidade daquele que faz jus à confiança que lhe é atribuída por outra ou outras pessoas ou que cumpre os compromissos assumidos. A fidelidade partidária é espécie muito particular e gera situações que a crise do PT também submeteu à avaliação jurídica. Nela, as principais alternativas para o petista são duas: deve ser fiel à disciplina definida no estatuto partidário e nas decisões dos órgãos superiores da agremiação ou pode preferir princípios defendidos historicamente pelo petismo, quando aquelas e estes sejam contraditórios. Ambas as alternativas envolvem o direito dos chamados "radicais" de discordarem da maioria, opinando e votando segundo sua consciência, e o direito da direção do partido de caracterizar a infidelidade partidária, punindo-os.
A lei brasileira permite subproduto espúrio da infidelidade, na habitual revoada para os partidos que alcançam o poder. Aliás, o governo petista, para assegurar o controle do Legislativo, tem estimulado a revoada para o ninho de sua maioria, fazendo com que, de repente, políticos passem da oposição para a situação, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. A Constituição dá a regra geral. Assegura a livre formação dos partidos políticos no artigo 17, assim como sua fusão, incorporação e extinção, desde que resguardem a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana. A partir daí, vale tudo. No espaço exclusivo de cada agremiação partidária, predomina a disciplina interna desde que respeitados os direitos invioláveis à plena defesa e ao contraditório.
Façamos uma interrupção para discutir se a imposição da fidelidade partidária seria um bem ou um mal. Para chegar à luz, temos de verificar o que tem acontecido na política brasileira. O leitor sabe dos hábitos dos políticos que trocam de partido como o homem troca de camisa. É estranho, mas o eleitor tende a não mostrar aborrecimento por isso. Falta a tradição de partidos inspirados em sólidos preceitos programáticos. O eleitorado aceita estatutos partidários incongruentes, com definições gerais, cuja aplicação varia ao sabor das circunstâncias. O PT oposicionista, desde a redemocratização, manteve perfil rigoroso, não se furtando de definições segundo a boa ética política. O PT governo imita o presidente Fernando Henrique Cardoso ao dizer: não leiam nem ouçam o que os petistas disseram no passado.
O drama do conflito entre os "radicais" (cujo grupo foi sendo esvaziado lentamente pelos que se atemorizaram com a pressão do alto) e os líderes do PT encontra solução na lei, apesar de não confundível com a ética. A legislação vigente, da Constituição às instruções da Justiça Eleitoral, faz predominar a vontade da maioria que dirige cada partido. Do ponto de vista estritamente legal, a alta direção do PT está com a razão.
Do que me lembre, a mais antiga submissão aos princípios da fidelidade legal vem da lei dominante nos tempos do feudalismo. Consistia no dever, imposto ao rendeiro ou vassalo, de prestar serviços e ser obediente ao seu castelão e, principalmente, de se manter fiel a ele. Naqueles tempos, o nobre feudal tinha poderes, a rigor, ilimitados, mas, ainda assim, o preceito fundamental observado pelo rendeiro ou vassalo, sem discussão, consistia em ser sempre digno da confiança de seu senhor. Nem a força de antes nem a maioria de hoje parecem capazes de preservar os melhores princípios quando predomine a urgência dos interesses imediatos.


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