UOL


São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SEGURANÇA

Para sobreviver, PM leva vida de fugitivo, separado da família, mentindo sobre a vida profissional e fazendo bicos

Soldado esconde a profissão dos vizinhos

DA REPORTAGEM LOCAL

O soldado da PM José (nome fictício), 43, vive quase como um foragido da Justiça. Mente sobre a profissão, evita os vizinhos e se mantém isolado em apartamento de quarto e cozinha depois de ser abandonado pela mulher e pelos filhos.
A farda, objeto de orgulho no início da carreira, passou a ser motivo de medo. Jamais a usa fora de serviço. Diz que se mantém anônimo por sobrevivência, apesar de sentir pela profissão a mesma paixão de 23 anos atrás, quando entrou na Polícia Militar. (GILMAR PENTEADO)
 

Folha - As estatísticas mostram que 70% das mortes de PMs ocorrem no horário de folga.
José -
Por causa do bico, cara. Tem vários colegas meus que morreram no bico, vários. Na zona leste, neste ano, pelo menos oitos policiais morreram assim.

Folha - Se ganhasse mais na polícia, continuaria no bico?
José -
Claro que não. Se eu estivesse ganhando mais, hoje eu não moraria sozinho, não teria meus filhos longe de mim. Existem momentos em que a família não aguenta. A família chega e fala: ou a polícia ou nós. Aí você tem de fazer a opção. Ou vai viver de amor com a família debaixo de uma ponte ou vai continuar na polícia.

Folha - O sr. esconde a farda quando volta para casa?
José -
Eu levo a farda na bolsa. A minha identidade [funcional] eu coloco na meia. Dizem que são 17 mil policiais militares na zona leste. Trombar [encontrar] com um fardado fora de serviço é a coisa mais difícil do mundo.

Folha - E isso não é estranho?
José -
Adoro o que eu faço. Sou apaixonado pela Polícia Militar e o que me deixa triste é não poder mostrar para todo mundo que eu sou um policial [chora].

Folha - O sr. tem medo?
José -
De todo mundo. De bandido, da corregedoria, da polícia.

Folha - Foi essa vida que fez sua família ir embora?
José -
Meus filhos se mudaram para o interior. Eu tive de sair da casa onde vivia. Os bandidos vieram para cima porque souberam que era um polícia (sic). Onde eu moro hoje, ninguém sabe minha profissão. Entro e saio à paisana.

Folha - Como eram as ameaças?
José -
Colocavam papelzinho na caixa do correio escrevendo "gambé [PM na gíria de criminosos] maldito, vai morrer". Escreviam no poste, no muro.

Folha - Como o descobriram?
José -
Uma viatura passou lá e um parceiro me reconheceu, me cumprimentou e pronto. Era perto de um ponto-de-venda de droga. Em seis meses, eu tive de me mudar. Hoje em dia, ou você se esconde ou dança mesmo.

Folha - E isso colaborou para a separação?
José -
Também. Os meninos começaram a falar em ir embora. Tentei conseguir vaga no interior, não consegui. Um dia, a mulher virou e disse: você não é vagabundo, é inteligente, consegue trabalhar, você escolhe. Mas aí eu falei: como eu vou largar os anos de polícia? Eles arrumaram um caminhão de mudança e foram embora para o interior.

Folha - Foi a escolha entre a polícia e a família?
José -
É isso. Só para você imaginar, fui reprovado cinco vezes na polícia. E passei na sexta, tanta era a vontade que eu tinha, cara. Eu era doente para entrar na polícia. Eu gosto ainda, mas não posso falar o que eu sou. Eu me sinto um zero à esquerda. Profissionalmente, eu sou um cara frustrado.

Folha - O sr. se arrepende de não ter deixado a polícia?
José -
Um homem com mais de 40 anos ia arrumar emprego onde no interior? Eu não tinha opção. Eu não sei, eu não tenho mais projetos [chora].

Folha - Onde o sr. mora hoje?
José -
Em um quarto e cozinha. Cumpro o meu horário, não tenho ânimo, não vejo a hora de chegar a noite para encostar a viatura e ir embora.

Folha - E os vizinhos atuais, sabem que o sr. é policial?
José -
Não tenho amizade com os vizinhos. Porque, se permitir, o vizinho vai entrar em casa e vai ver a farda pendurada no varal. Não tenho contato. É "bom dia" e "boa tarde" para não dar liberdade de entrar na casa.

Folha - E o sr. mente sobre a sua profissão?
José -
Onde eu moro, o dono da casa acha que sou gerente de uma loja. A casa não foi alugada em meu nome porque eu teria de mostrar comprovante de serviço. À noite, não fico em casa. Aí digo que faço um bico de garçom lá no centro da cidade.


Texto Anterior: Secretaria diz ter tomado medidas
Próximo Texto: Bertioga terá vila exclusiva para policiais
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.