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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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DANUZA LEÃO

Seria bem melhor

Eles foram felizes? Até foram; mas o que sobrou de todos esses anos de tanto amor, aprendizado, tentativas, esperas, angústias, noites bem e maldormidas, alegrias intensas e depressões atrozes, traições horrendas (dele) e vinganças inconfessáveis (dela)? O que sobrou, afinal?
Lembranças? É pouco, considerando o que foi esse romance. Nem filhos tiveram, para poder dizer que esses ficaram. Algumas cartas, fotos (escrito atrás "eu amo essa mulher"), a conta de um hotel onde estiveram um dia. Bem pouco, convenhamos, e na hora em que você está só e triste, ter de que lembrar é ainda pior do que ficar no vazio total. Por isso a prudência manda: acabou, não tem mesmo volta? Então vamos rasgar todas as provas concretas do que existiu e não existe mais, para não ter a tentação, num domingo de chuva, de abrir aquela caixa de madeira e passar a vida a limpo.
Fica pensando: adianta ter sido feliz? Chega à conclusão de que é o passado que a Deus pertence, porque a memória só serve para martirizar -ou porque as lembranças são boas, ou porque são péssimas. As boas fazem a gente sofrer porque dão saudade, mas não levam ninguém a um estado de felicidade; já se pensar nas ruins vai para o fundo do poço -e por dias seguidos.
Que foi bom, lá isso foi; havia dias em que ele ligava do escritório só para dizer, meio sem jeito, que não estava conseguindo trabalhar de tanto que pensava nela. Com os olhos brilhando e o coração na boca, ela respondia que também não -e o melhor é que era tudo verdade.
Vai mesmo jogar tudo fora? Até pode, mas não adianta, porque está tudo dentro da cabeça; bom mesmo seria perder a memória.
Continua pensando: se tivesse passado a vida com o famoso coração fechado, não estaria ali agora lembrando, como uma tonta, do quanto já foi feliz -não só com aquele, mas com muitos outros. E se pensar muito, vai descobrir que não tem saudades só dos tempos felizes, mas de todos os tempos passados, quando se martirizava em casa se achando apaixonada e pensando que não podia viver sem ele -fosse ele quem fosse.
O problema está nela, que perdeu a capacidade de inventar paixões. Aos 25, ela olhava para um certo tipo de homem e o coração batia desordenadamente.
Aos 35, quando cruzava com um que poderia, eventualmente, dar pé, ela examinava com mais calma e já radiografava seu coração -e poucos resistem a um exame desses.
Hoje, mesmo sem querer, em alguns segundos faz uma tomografia computadorizada da alma daquele homem que 20 anos antes a teria feito tremer nas bases. E aí não dá, é claro.
Se pudesse mudar alguma coisa, mudaria ela mesma. Seria mais feliz se continuasse boba, ingênua, se fosse menos aguda nas suas avaliações, menos ferina nos seus julgamentos. Menos lúcida, sobretudo.
Mesmo sabendo que não é a rainha da cocada preta e que muitas vezes pode estar enganada, costuma acertar. E como sabe disso? Quando vê os erros dos amigos, erros que desde o primeiro momento estavam claríssimos para ela.
A felicidade só é boa quando está acontecendo no tempo presente; se existiu no passado, não resolve rigorosamente nada.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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