São Paulo, domingo, 31 de outubro de 2004

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GILBERTO DIMENSTEIN

Bem-vindo a São Paulo

Era um começo de noite e o Spot ainda estava quase vazio. A sorridente garçonete aproximou-se. Antes que eu dissesse que, como aguardava amigos, não pediria nada ainda, ela, com ar compenetrado, inclinou-se e, em voz baixa e um tanto constrangida, fez-me um pedido: "Desculpe-me por incomodá-lo, mas preciso de sua ajuda".
Luciana Gil prepara para o curso de psicologia social da PUC uma dissertação de mestrado sobre protagonismo juvenil. Tinha lido alguns dos meus textos sobre o assunto, mas não sabia como me encontrar nem, se me encontrasse, se iria atendê-la. Queria orientação sobre experiências bem-sucedidas no Brasil e referências bibliográficas.
Com um olho em mim e outro nos clientes que começavam a chegar, Luciana rapidamente tomava nota do que eu lhe dizia. Alegre, agradeceu, despediu-se, mas logo retornou, apresentando desculpas: "Você quer alguma coisa?". Para comemorar a inusitada cena, mudei de idéia e pedi uma taça de vinho branco.
Enquanto aguardava, agora acompanhado pelo vinho gelado, aproveitei para escrever essa cena no meu caderno de anotações sobre personagens paulistanos. À espera de uma data especial, demorei várias semanas para fazer Luciana habitar algum dos meus textos sobre São Paulo.
Com seus 24 anos, Luciana fala tanto ou mais sobre o futuro desta cidade do que José Serra e Marta Suplicy, um dos quais, nesta data especial, sairá vitorioso na disputa pela prefeitura paulistana. Aquela conversa apressada no Spot é um minúsculo fragmento, aparentemente isolado, muito longe da média, mas resume toda uma tendência: afinal, em quantos lugares do país uma garçonete pede ajuda para seu projeto de pós-graduação ao mesmo tempo em que atende os clientes?
Se Luciana é sinal de que uma nova São Paulo se vai desenhando, o mesmo se pode dizer da semana que antecedeu o pleito de hoje, também um magnífico exemplo desse novo perfil da cidade. Estamos cercados de inúmeras exposições de arte, como nunca se teve notícia, em meio à criação, em ritmo também desconhecido, de espaços culturais. Some-se a isso a mostra internacional de cinema, que tem levado batalhões de jovens às salas.
Uma das atrações da semana é o filme "Bem-Vindo a São Paulo", uma colcha de retalhos feita por diferentes cineastas estrangeiros. Entre os participantes, Caetano Veloso, que, de câmera à mão e do alto de um prédio, recita poemas. No filme, aparece, como não poderia deixar de ser, a esquina da Ipiranga com a São João, a encruzilhada de "Sampa".
A cidade que o novo prefeito irá governar (ou que Marta continuará a governar) é, apesar de suas enormes manchas de miséria e violência, cada vez mais educada, sofisticada e cosmopolita -ou seja, mais parecida com a cara de Luciana. Um dos fatos mais interessantes desta eleição foi o suadouro a que foram submetidos os candidatos nas sabatinas e entrevistas, obrigados a explicar, com um mínimo de detalhes, suas propostas. Truques de marketing foram desmontados. A agenda urbana virou conversa de botequim e, por isso, não se conseguiu federalizar a eleição. A cidade esteve em primeiro lugar.
Indicadores de escolaridade, expectativa de vida e crescimento populacional revelam que São Paulo tende a melhorar. Até porque se propagam os programas sociais do governo, as empresas apóiam projetos de inclusão e evolui o preparo das entidades comunitárias. A economia paulistana vai gerando mais empregos na área de serviços (ocupados em sua maioria por mulheres), que, aos poucos, substituem a perda das indústrias.
Coloquem-se num mesmo saco melhoria na escolaridade, população estável, disseminação de programas sociais e articulação comunitária para que se perceba que os avanços são inevitáveis -independentemente de quem seja eleito.
Isso não significa que seremos um paraíso, longe disso. Significa apenas que o capital humano será mais sofisticado, e a administração da miséria, menos difícil -no mínimo, em razão da queda da taxa de fecundidade e da redução da migração.
Ao contrário do que se possa pensar a partir desse comentário sobre indicadores positivos, os prefeitos terão ainda mais dificuldade de satisfazer os cidadãos. E isso não só porque São Paulo está quebrada, as carências são monumentais e os eleitores se embalam nas promessas de campanha mas, em especial, porque os habitantes, instruídos e conscientes, vão cobrar mais e mais eficiência e seriedade.
Portanto, caro vencedor eleito (ou vencedora) no dia de hoje, bem-vindo a São Paulo, onde o futuro se desenha menos nos palácios e mais em jovens, como Luciana, que "ralam" de noite no restaurante para pagar a pós-graduação de dia. Esses são os nossos melhores atores e o nosso melhor roteiro.
PS - Todos podem ter as mais profundas divergências em relação a Marta e a Serra, mas quem for sério não pode deixar de reconhecer que tê-los juntos no segundo turno é um privilégio, olhando a média da classe política brasileira. Apesar de todas as baixarias e manipulações, revela-se o melhor de nosso capital humano a serviço da política.

E-mail - gdimen@uol.com.br

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