São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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Eliane Cantanhêde

Eu engravidei solteira


Era domingo, fazia sol e eu já estava meio redondinha no início da gravidez. Meti camiseta, bermuda e um chinelo tamanho 41 (calço 36), tudo do meu namorado, o jornalista Gilnei Rampazzo, e lá fomos dar a notícia à minha família. Papai abriu a porta, me olhou e ironizou: "Não conhecia essa sua roupa, filhinha". O pior é que ele também mal conhecia o meu namorado, mas o Gilnei não titubeou: "A Nani está grávida, e nós vamos casar". Ele congelou por um segundo, depois me deu dois beijos formais, apertou as mãos do Gilnei e tascou: "Você é um homem de sorte".
Dali, fomos falar com a mamãe, empoleirada numa escada na área de serviço, cuidando dos passarinhos. Papai foi direto: "Ruth, nós vamos ser avós". Pensei que ela fosse despencar lá de cima, mas desceu e, antes de mais nada, fez duas perguntas pragmáticas: "Quantos meses? E quando é o casamento?" . (Detalhe: eles não sabiam, mas nós já íamos casar mesmo, antes de saber da gravidez.) Em casa foi fácil. Papai e mamãe sempre estiveram à frente do seu tempo. Ele foi o tio preferido dos dois lados e o confidente de todas as minhas gerações de amigos, do jardim de infância ao jornalismo. Ela começou a trabalhar aos 14 anos, para ajudar a família e sustentar os estudos à noite. Na década de 50, com dois filhos pequenos, escandalizava os Cantanhêde porque saía do trabalho e ia ao cinema sozinha à noite na Cinelândia, centro do Rio. Os pais dela eram semi-analfabertos, mas cresci cercada de livros.
Mais complicado foi com meus sogros, espíritas e tradicionalistas, referências em Americana, interior de São Paulo. Gilnei era o caçula de quatro. Ao saber da novidade, a mãe dele teve tremedeira, pensou que fosse desmaiar. E, quando foi a Brasília me conhecer, avisou: "Olha, não fica triste se a Josilda (a única mulher entre os irmãos) não quiser falar com você no início. Depois, ela se acostuma..." No casamento, que foi só no civil, com um almocinho familiar em casa depois, minha sogra foi de marrom e meu sogro não entendia nada: a barriga não aparecia no vestido esporte azul, mas o assunto era a Manuela (o bebê não tinha sexo ainda, mas já tinha nome e era assumidíssimo).
Muito diferente do que acontecia na época, quando as noivas grávidas se apertavam para esconder a barriga, não se tocava no assunto e a criança nascia "de seis meses". Uma prima distante passou meses "estudando" fora e, quando voltou, deixou o bebê para ser adotado numa clínica. Prati-camente ninguém sabe que ela foi mãe um dia. Era uma solução muito comum no interior dos EUA nos anos 60, quando fui para lá nos primórdios dos intercâmbios.
No primeiro Natal na nova família, minha cunhada levou um bolinho e o melhor sorriso possível para me conhecer na casa da minha sogra. Depois, comentou que eu era "muito diferente" do que ela imaginava. Sabe-se lá o que ela imaginava... Ninguém, aliás, dava um tostão furado pelo casamento, que completa 30 anos em dezembro. E adoro a família do meu marido, principalmente a minha sogra, Ilda, que se esforça para achar tudo natural agora, aos 88.
Em maio passado, Manuela, que é arquiteta, comentou depois do almoço: "Estou pensando em ir morar com o Pinduca (cada apelido...)". Quando? "Na semana que vem." E foi assim, depois de ir levando roupas, sapatos, computador e bichinho de pelúcia, que a minha filha saiu de casa suavemente para morar num quarto-e-sala bonitinho e apertado. Ainda me resta a pedagoga e psicóloga Marina, mas só metade da semana. Na outra, fica com o Du...
Comecei a trabalhar aos 19 para 20 anos e, quando engravidei e casei, aos 25, já era jornalista na revista "Veja" , tinha comprado carro com meu salário e pagava as prestações do meu apartamentinho. Papai tinha me dado a entrada.
Três décadas depois, a combinação de liberdade sexual com falta de mercado de trabalho produziu um efeito curioso: a moçada classe média hoje namora, conhece a vida e viaja pelo mundo cedo, mas demora mais para se consolidar profissionalmente e sair de casa. Os pais, coitados, sofrem muito nas madrugadas com dois temores que atravessam as décadas: os carros assassinos e as drogas pesadas. E há um terceiro, que cresce ano a ano: a violência.
Quando pergunto à Manuela sobre o casamento, ela responde: "Você não casou na igreja, não me vem com essa". Claro, em 1977, plena ditadura militar, eu não poderia imaginar o ridículo de entrar numa igreja num vestido de bombom, com todo mundo me olhando e aquela música "cafona" (como se dizia). Mas, hoje, todo mês alguma amiga delas casa com véu, grinalda, vestidão, mãe enxugando uma lágrima no canto do olho. Será que as minhas filhas resistem?


Eliane Cantanhêde, colunista da Folha, é casada e tem duas filhas

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