São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Karime Xavier / Folha Imagem
O ilustrador Orlando Pedroso com a mulher, a fotógrafa Cecília Laszkiewicz, fazem sala para a filha Olívia e seu namorado, Pedro Lourenço; a outra filha do casal também “namora em casa”
SÃO PAULO - O ilustrador Orlando Pedroso com a mulher, a fotógrafa Cecília Laszkiewicz, fazem sala para a filha Olívia e seu namorado, Pedro Lourenço; a outra filha do casal também “namora em casa”


Paulo Sampaio e Simone Iglesias

Eles podem "namorar em casa"

A velha expressão ganha novo significado no terceiro milênio; pais e filhos contam as vantagens e as dificuldades de aderir ao 'sexo delivery' familiar

Tch, tch, tch, tch: o barulho do chinelinho arrastando no chão do corredor era um sinal de que o avô alemão da vestibulanda Bárbara Richter, 18, ia e vinha do lado de fora do quarto em que ela estava com o namorado. Isso durante o dia. “Uma tarde, meu avô entrou no quarto e disse pra mim, mas se dirigindo a nós dois, que aquilo não era hora de estar trancado, que a gente deveria aproveitar o dia, fazer algo produtivo”, lembra Babi. O namorado, o fisioterapeuta Rodrigo Martucci, 25, podia ficar o dia inteiro, mas no máximo até as 22h.
Não foi fácil conseguir permissão para ele dormir na casa em que Babi mora com os avós (seis meses por ano, quando eles vêm da Alemanha), a mãe e o irmão mais novo. “Pela minha mãe tudo bem, mas meu avô é conservador.” Uma noite, Rodrigo dormiu “sem querer” por volta das 20h e acordou só às 23h. “Ouvi um monte, o opa (avô em alemão) conversou sério comigo. Disse: ‘Aqui nessa casa a gente não tem esse costume’. Eu já tinha até tomado vinho com ele, perdi vários pontos”, ri Rodrigo.
No dia seguinte, o rapaz pediu desculpas ao avô da namorada, disse que a intenção não era desrespeitar o ambiente e explicou que suas intenções com Babi eram sérias. “O relacionamento melhorou 100%”, conta. O namoro já dura um ano e sete meses.
A produtora cultural Yara Kirsten, 41, mãe de Babi, acredita que talvez o sistema não funcionasse tão bem se seu pai (o avô de Bárbara) morasse na casa o ano inteiro.
“Não vou dizer que a relação seja sempre tranqüila. Há conflitos, a divisão de espaço é exercitada com altos e baixos. Ela sabe que, aqui, existe uma hierarquia: quando ela tiver a casa dela, aí vai ser outra coisa”, diz. Entre as vantagens de liberar a filha para dormir com o namorado em casa está, segundo Yara, a possibilidade de mantê-la mais próxima –e, também, de saber o que ela faz.
“Se eu não os deixasse dormir em casa, a Babi sairia mais. E, talvez, tivesse coisas para esconder de mim. Como não tem aquela coisa de ter de ver o namorado no sábado, diminui a ansiedade”, diz.
A qualidade do relacionamento também muda. “O diálogo é mais ma-duro quando você dá responsabilidades e trata o filho como adulto.” Babi acredita que isso vale especial-mente para os meninos, que ama-durecem mais lentamente. “Meu irmão ainda está na fase de ficar com os amigos zoando das meninas”, diz.
Na cama de casal comprada por Yara (“foi numa promoção”), os dois posam para as fotos no “maior grude”. Apesar de poderem dormir juntos, como adultos, eles mostram, entre beijinhos, enroscos e declarações ditas baixinho, que são namorados na acepção mais adolescente do termo.

Família “na boa”

Assim como Rodrigo, o estudante Pedro Lourenço de Mauro, 19, também ganhou a chance de dormir com a namorada na casa dos pais dela. É segunda-feira, 9h, quando ele aparece na sala com cara de sono, meio constrangido, levado pelas mãos por Olívia, 18. O ilustrador Orlando Pedroso, 48, e a fotógrafa Cecília Laszkiewicz, 47, pais de Olívia, também estão na sala.
A falta de jeito do rapaz se justifica em parte porque o namoro começou há apenas quatro meses e também porque ele foi praticamente intimado pela reportagem a falar. Como Olívia nunca precisou pedir autorização dos pais para namorar em casa– “as coisas foram acontecendo naturalmente”–, parece complicado juntar todo mundo para uma sessão informal de análise familiar, com o novo agregado falando. “No início, não é confortável. Os pais dela são ‘de boa’, mas é uma situação nova para todo mundo. A melhor coisa é conversar (para criar uma intimidade). Quanto mais se fala, mais normal fica, entendeu?”, diz Pedro.
Muito “sussa”, Orlando observa a conversa sentado no sofá. Ao telefone, antes da entrevista em grupo, ele já tinha dito: “Às vezes é complicado porque ‘neguinho’ levanta às três horas da tarde do domingo, e você lá, na sala: ‘Bom dia’. Mas no geral as coisas sempre foram tranqüilas com as meninas [a outra filha, de 20, não quis participar], porque está claro que nós somos uma família, e isso quer dizer que tem de ter convívio. Não é pra chegar aqui, bin-bin, e ir embora”, ele diz. Por criação –e também por sorte–, as meninas não são mesmo de “ficar”: “Se elas entrassem cada semana com um aqui, a gente ia ter de conversar”, diz a mãe, Cecília.
Tanto ela quanto Orlando acreditam que, ao dar às filhas a possibilidade de dormir com os namorados em casa, eles as mantêm mais tempo por perto e, quase que por ilação, estimulam relações mais estáveis e maduras (já que não há necessidade de transar escondido ou em casa de amigos). “A chave é balancear a liberdade que se dá, sem perder a segurança neles. Não é muito fácil”, reconhece Cecília.
Olívia diz que, em geral, os pais de suas amigas são mais conservadores. “Muitas meninas têm de mentir que estão dormindo na casa de outras para ficar com o namorado. Na maioria das vezes ainda rola uma espécie de faz-de-conta. Os pais até sabem o que pode estar rolando com a filha e o namorado, por exemplo, em uma viagem à praia, mas não tocam no assunto”, explica.
A relação com a mãe de Pedrinho, como Olívia chama o namorado, é “na boa”. “Ela é tranqüila, passa a maior parte do tempo no quarto, não aparece muito”, diz. O curioso é que, segundo Olívia, Pedrinho prefere que a mãe não leve o namorado para dormir em casa. “Não é bem assim...”, diz ele, hesitante. E acaba reconhecendo. “Tá bom, pode colocar aí. Prefiro mesmo.”

Namorado/hóspede

Diferentemente de Olívia, que obteve “naturalmente” a liberdade de levar o namorado para dormir em casa, a gaúcha Fernanda Oppitz, 26, conseguiu a mesma autorização de uma forma não muito usual. Ela começou a namorar Dimitrius José, 25, há seis anos. O casal se conheceu em Tapes (a 103 km de Porto Alegre), onde os dois nasceram, mas Fernanda morava –e mora– em Porto Alegre. Passados três anos de namoro, Dimitrius resolveu se mudar para a capital gaúcha. Sem ter onde ficar, conversou com Tânia, a mãe da namorada, sobre a possibilidade de morar temporariamente na sua casa até conseguir emprego e alugar um apartamento.
“Ele está aqui até hoje. Eu queria que se mudasse há um tempo atrás, mas ele ficou. O Dimi não interfere nas coisas da família, é como um filho”, disse Tânia Regina Oppitz, 56. Ela sempre permitiu que os namorados e namoradas dos filhos –além de Fernanda, Taline, 31, e Edgar, 24– dormissem na sua casa, no mesmo quarto e na mesma cama.
Os motivos são dois, segundo ela: segurança e por encarar o sexo com naturalidade. “Quando comecei a namorar o pai dos meus filhos, há 35 anos, a gente transava. O que eu poderia imaginar quando a Taline, o Edgar e a Fernanda começaram a namorar? Que, por acaso, não transariam?”, disse Tânia, hoje separada.
Mas a primeira experiência, com a filha mais velha, não foi assim tão fácil. “Me assustei no começo. Ela estava namorando e, nos finais de semana, o namorado e os amigos vinham aqui para casa. E iam ficando, disfarçadamente, como se pegassem no sono e esquecessem de ir embora. Então, chamei a Taline para conversar, perguntei se estava se cuidando. Tive que refletir por um tempo e administrar a situação”, afirmou.
Pesou também na decisão de Tânia o fato de imaginar a filha de madrugada na rua, sujeita à violência. Bom para Fernanda e Edgar, que se beneficiaram da experiência com a irmã mais velha.
Mas nem tudo são flores na relação de Tânia com os namorados dos filhos. Ela diz se incomodar com a falta de liberdade que sente dentro da própria casa. E há uma regra que deve ser obedecida por Fernanda e Edgar: eles podem levar para dormir em casa os namorados, mas nunca eventuais “ficantes”. “Se não vira esculhambação”, justifica.
Os filhos, acostumados a dormir com os namorados em Porto Alegre, quando vão visitar o pai, Emilio Oppitz, 59, em Tapes, encontram uma realidade bem diferente: lá, ninguém pode dormir no mesmo quarto. Nem mesmo Taline, que já passou dos 30 e mora sozinha há quatro anos.

Tolerância x hipocrisia

A maior tolerância em matéria de sexualidade não anima muito a terapeuta Magdalena Ramos, 68, coordenadora do Núcleo de Casal e Família da PUC-SP, para quem o resultado do Datafolha reflete uma atitude hipócrita da sociedade brasileira. Embora reconheça que os pais, independentemente da classe social, estejam bem mais permissivos: “É aquele velho ditado: ‘O que os olhos não vêem o coração não sente’. Eles não concordam que os filhos transem dentro de suas casas, mas fora a atitude é diferente. É uma conduta cínica”. A terapeuta ressalta que a troca constante de parceiros é um dos motivos de não permitir que os filhos durmam com seus parceiros em casa. “Eles sentem como se eles, os próprios pais, estivessem expostos a essa mudança freqüente.” O dilema, avalia Magdalena, é que os pais não sabem como lidar como a banalização do sexo. “A castidade é motivo de gozação entre meninas e meninos. Para ser auto-afirmar, o jovem coleciona relações. Eles acabam perdendo o encanto que a sexualidade pode ter.”
Segundo Jonia Lacerda Felício, 49, psicóloga do Instituto de Psiquiatria da USP, o que deve ficar claro é que “a casa é dos pais”. “Os filhos não devem trazer suas intimidades para os pais sem um certo grau de reserva”, diz. Para Jonia, é claro que os pais sabem que os filhos têm vida sexual. “Mas a relação entre eles não pode evoluir para uma situação de extrema intimidade que derrube essa fronteira. Ou seja, os pais não devem participar tão extensamente da vida afetiva e sexual dos seus filhos.” (ROBERTO DE OLIVEIRA)

Filho pródigo

O motivo pelo qual o universitário e professor de inglês Carlos Eduardo Marques Cardoso Ferreira da Silva, 31, ainda vive na casa dos pais, mesmo podendo ter a sua, é simples assim: ele gosta de mordomia. “Moro com eles pelo conforto, a praticidade e também porque não estou a fim de pagar conta de telefone, IPTU e ir a reunião de condomínio. Ainda estou me firmando profissionalmente”, diz Cadu, que cursa a segunda faculdade, de comunicação, é formado em administração e faz MBA. Dá a entrevista cercado por pai, mãe, namorada e madrinha. Para quem não tinha percebido até agora, Cadu é filho único: “A mãe dá um trato especial nele, como se ainda fosse um menino de cinco anos”, diz o pai, o advogado aposentado Hormentino Ferreira da Silva, 68.
A mãe, a funcionária pública aposentada Hortencia Ferreira da Silva, 68, não chega a dizer textualmente que faria qualquer coisa para manter o filho em casa, mas, também, não vai fazer pressão para ele sair. Cadu chegou a morar um ano em Londres, mas voltou. “Ele é que tem de saber o momento certo: vai quando quiser.”Enquanto isso, ela aproveita a companhia do que chama de “amigão”. Vai ao cinema com ele, a shows de música e, em retribuição, já o convidou para acompanhá-la em uma viagem à Europa. “Meu filho possui um temperamento tão firme que eu o trato como um guru: quando tenho de tomar uma decisão, eu o consulto”, diz.
Ela o consulta, mas evita dar palpites, especialmente na vida amorosa de Cadu: “Quem sou eu para dizer a melhor mulher para ele. Depois, eu digo, ele casa com uma errada e eu fico com esse peso para o resto da vida.” Casar? Bom, dona Hortencia, por enquanto pode ficar despreocupada. Apesar de namorar há cinco anos a dentista Renata Chaves, 29, Cadu não tem a menor pressa. “Não quero assumir rotina de homem casado, sabe, ser cobrado. Para quê?”, pergunta.
Renata pensa da mesma forma. Ela diz que nunca pressionou o namorado para casar porque “sempre ficou muito claro que a gente só assumiria algo fora da casa dos nossos pais quando tivesse independência financeira”. “Para ter um casamento sem conforto, pelo menos o que eu tenho em casa, não vale à pena.” OK, mas não deve ser muito confortável dormir (e acordar) na casa dos pais do namorado... “Não vejo problema”, diz Renata, e olhe que ela só adotou o pernoite no quarto do namorado lá pelo sexto mês de namoro. Os dois costumam freqüentar motéi, e afirmam com verdadeira traqüilidade que não vêem transtornos em precisar apelar para um lugar tão impessoal. “A gente faz isso sempre, já se acostumou.”

Texto Anterior: O medo da galera
Próximo Texto: Questão de concepção
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.