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Pasquale Cipro Neto

"Para si próprio"

Não seria melhor dizer que brasileiros e portugueses usam de modo diferente os pronomes "si" e "consigo"?

Estava na "capa" de um site de notícias, ontem: "Ex-chefe do TJ liberou 1,5 milhão para si próprio". Quando cheguei ao jornal, já havia mensagens de leitores que questionavam o emprego da expressão "para si próprio". Vamos lá, pois.

De início, é bom lembrar que "si" é pronome pessoal do caso oblíquo e pertence às duas terceiras pessoas (singular e plural): "Vive cheio de si"; "Caíram em si e silenciaram".

Convém dizer também que alguns dos nossos dicionários e gramáticas registram esse pronome apenas como indicador de processo reflexivo ("Ela só pensa em si") ou recíproco ("Acertaram entre si as datas"). No primeiro exemplo ("Ela só pensa em si"), o pronome "si" tem valor reflexivo porque se refere ao sujeito ("ela"). Tradução: "Ela só pensa em si" significa que ela só pensa nela mesma, em si mesma, em si própria.

A esta altura, o caro leitor talvez esteja se lembrando de algum romance português que tenha lido vida afora e das várias ocorrências de construções como "Ela só pensa em si", em que o "si" não se refere ao sujeito ("ela"), mas ao interlocutor. Tradução: no português de Portugal, a frase "Ela só pensa em si" tem significado diferente do que tem no português brasileiro. Quem a emite usa o "si" em relação ao seu interlocutor. Tradução: no português de Portugal, "Ela só pensa em si" significa que ela só pensa na pessoa com a qual está conversando (ou "está a conversar", como diria a maior parte dos portugueses).

O fato de alguns dos nossos dicionários e gramáticas não reconhecerem esse uso lusitano (e também um pouco brasileiro) cria uma situação no mínimo estranha. Como fica, por exemplo, o vestibulando que lê uma obra de um autor português (clássico ou contemporâneo) e encontra um sem-número de registros desse pronome (e de "consigo") iguais aos considerados "errados" pelos nossos dicionários e gramáticas? Não seria melhor fazer o que faz o "Houaiss", por exemplo, que, no verbete "si", diz que "é muito comum em Portugal (no Brasil, menos) o emprego de si em relação à pessoa com quem se fala ("Gosto muito de si")?

Para deixar claro: parece-me razoável dizer que, no português culto do Brasil, não ocorre o uso dos pronomes "si" e "consigo" em relação à pessoa com quem se fala, ou seja, não ocorrem construções como "Gosto muito de si", "Quero ir consigo", "Amanhã falo consigo" etc., que, no entanto, são mais que comuns (e legítimas) em Portugal, seja na oralidade, seja na escrita. Parece melhor assim, não? Convém dizer que, na língua culta do Brasil, teríamos estas formas: "Quero ir com você" ("com o senhor", "com a senhora"), "Amanhã falo com você" ("com o senhor", com a senhora").

Para quem ainda não entendeu, deixo claro que se trata de uma questão de uso (e, como se sabe, o uso é o senhor da questão, quando o assunto é língua), e não pura e simplesmente de "certo ou errado".

Voltando à frase da qual se extraiu o título desta coluna ("Ex-chefe do TJ liberou 1,5 milhão para si próprio"), convém dizer que é comum e mais do que legítimo o emprego de uma expressão de reforço como "mesmo" ou "próprio" depois do "si" que denota ação reflexiva ("Sempre exige muito de si mesmo/próprio"). Como se vê, no título citado, o emprego de "para si próprio", que se refere ao sujeito ("ex-chefe do TJ"), é mais do que legítimo. No plural, teríamos isto: "Ex-chefes do TJ liberaram 1,5 milhão para si mesmos/próprios".

Estarei em férias nas duas próximas semanas. A coluna volta em 2 de fevereiro. É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

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