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Jairo Marques

Uma barriga de vantagem

Pessoas supostamente mais suscetíveis fisicamente ganham uma aura de bondade quase automática

Só muito recentemente, aqui no Brasil, a Polícia Federal começou a passar a mão de fato (ui!) durante as revistas às pessoas em cadeira de rodas, às mulheres grávidas e às demais pessoas que, por razões diversas, não enfrentam o "bip-bip" do detector de metais em aeroportos e outros locais onde segurança máxima é fundamental.

Será que eu, com esta carinha de "minino cadeirante bão", como diz o povo lá da minha terra, não seria capaz de fazer uma maldadezinha entrando no avião com uns traques ajeitados nos fundilhos? E de acobertar no estofamento um tijolo daquela erva de fazer o cigarrinho do capeta na volta da minha viagem ao "Polígono da Pamonha"?

Pessoas supostamente mais suscetíveis física ou sensorialmente ganham uma aura de bondade quase automática, afinal são todos seres que já estão na "lama", facilmente controláveis, e não estariam preocupados em atazanar ninguém.

Pois bem. Com a coletividade abençoando a vinda de quadrigêmeos ao mundo, uma megagrávida de bola do Playcenter passou semanas como sensação nacional, afinal haja fôlego, disposição e amor para aguentar tamanha barriga. Desconfiar de que houvesse algo estranho com aqueles passos combalidos seria quase uma heresia.

Evidentemente mulheres "barrigudas" precisam ter prioridade de atendimento, fazem jus à atenção e ao apoio diferenciados e devem ter condições totais para zelar por suas crias. Mas personalidade, caráter e atitudes não são moldados necessariamente nem exclusivamente por barrigas, equipamentos ortopédicos ou aparentes diferenças no esqueleto, na cachola, no poder de visão, de audição.

Em uma das propagandas de que mais gosto, da AACD -que cuida da funilaria de crianças mal-acabadinhas-, um garoto de uns sete anos, que usa muletas, está numa biblioteca pelejando, com seu equipamento de apoio, para apanhar o livro que está no alto da estante.

Uma menina bem da linda dá um sorrisinho e vai ao encontro do moleque para ajudá-lo. Ela sobe na escada para apanhar o livro e o danado fica logo debaixo, de olho na calcinha da voluntária. Ao final, a mensagem: "Garotos são todos iguais. Todos. As diferenças acabam aqui".

Quando um "serumano" passa por uma experiência traumática que lhe causa uma reviravolta na vida -uma doença grave, uma perda de alguém, uma deficiência-, quando uma mulher passa a gerar um novo ser para o mundo, de fato, há grande oportunidade e disposição de se formarem novas convicções e valores no trato com a existência.

Entretanto, ninguém se resume a apenas sua realidade física ou sensorial. Uma bengala ou um cão-guia não são, por si sós, credenciais de conduta ilibada. Barriga não dá vantagem em embates intelectuais.

Certo mesmo estava o fiscal da alfândega de um hilário e consagrado conto de Stanislaw Ponte Preta que desconfiou da velhinha que todos os dias atravessava a fronteira com um saco suspeito na garupa de sua motoca. A danada, que só revelou seu segredo contraventor após a promessa de não ir presa, realmente não levava nada de comprometedor no saco, mas era contrabandista, como suspeitou o profissional.

jairo.marques@grupofolha.com.br
@assimcomovc

AMANHÃ EM COTIDIANO
Antonio Prata

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