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Bichos

JAIME SPITZCOVSKY - jaimespitz@uol.com.br

Os pesadelos e a carrocinha

Claro que a imagem de centenas de cães e gatos num abrigo alimenta um inconformismo voraz

Na infância, a imagem da carrocinha assombrava meu imaginário. Ninguém conseguia me dissuadir da ideia de que aquele homem com um laço realizava algo importante, ao contribuir para ceifar o aumento da população de cães abandonados ou impedir a proliferação de zoonoses. Carrocinha era a concretização do mal.

Já adulto, ouvi falar do Centro de Controle de Zoonoses, instituição municipal responsável por cuidar de temas tão espinhosos como invasão de ratos, ameaças de escorpiões, cães e gatos abandonados.

Encaixei a imagem do CCZ nas referências da minha infância, sem pressionar a tecla de atualizar e assim, desprovido de informações, não consegui render-lhe uma simpatia imediata. Ao contrário.

Recentemente, resolvi conhecer o CCZ de São Paulo. Precisava pagar promessa a minha filha de adotarmos outro cão, audaciosamente aumentando a matilha, hoje com 11 membros. Silvinha, numa noite, me chamou ao seu quarto e reclamou que não conseguia adormecer. Um medo indefinido a rondava.

Argumentei que talvez fosse possível superar o medo. Que muitas vezes avaliamos ser difícil, ou mesmo impossível, ultrapassar um obstáculo que, na realidade, podemos domar. Sugeri então que fechasse os olhos, pensasse em algo que almejasse muito e, conseguindo dormir, ganharia um presente. "Pode ser um cachorro?", disparou.

Silvinha nunca mais teve dificuldades para adormecer. Por outro lado, eu tinha assumido uma dívida. E propus pagá-la com a adoção de um cãozinho do CCZ. Pensei que estaríamos mergulhando nas trevas de um mundo em que o ser humano se mostra incapaz de reconhecer aos amigos caninos os esforços deles para conviver conosco.

Imaginei que resgataríamos um novo amigo de um ambiente insalubre, cinzento. Enfim, do mundo da carrocinha da minha infância.

Semana passada, lá fomos ao CCZ. As piores expectativas foram, felizmente, engavetadas. Conhecemos um ambiente oposto ao que esperávamos. Santa ignorância.

Naturalmente, minha avaliação é um tanto superficial e de leigo. Não sou veterinário, e a visita durou apenas algumas horas. Mas a instituição que conheci oferece aos animais condições dignas, instalações bem cuidadas, veterinários empenhados, voluntários motivados.

O CCZ, com a proibição da eutanásia, não apenas deixou de ser o "corredor da morte" dos animais recolhidos (cães, gatos, cavalos). Tornou-se um importante centro de adoção, de ressocialização de exemplares agressivos, de campanhas por posse responsável. Tive de deixar de lado o já arraigado hábito de criticar o serviço público.

Na saída, a Silvinha, com boa dose de sabedoria infantil, ponderou: "Acho melhor adotarmos um cachorro que esteja num lugar pior". Deixamos o CCZ aliviados com o que vimos. Claro que a imagem de centenas de cães e gatos num abrigo alimenta um inconformismo voraz. Mas pelo menos na cidade de São Paulo conseguiu-se golpear a assombração da "carrocinha levando para o corredor da morte".

AMANHÃ EM COTIDIANO: Francisco Daudt

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