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Cotidiano
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Antonio Prata

Plano

Juntar dinheiro; montar um bunker; roubar exemplares de Hamlet e, neles, inserir a frase 'Ai, se eu te pego...'

Descobrir qual é a atividade profissional mais bem remunerada. Fazer cursinho. Prestar vestibular para a área. Ser o primeiro da classe. Arrumar um emprego. Ralar, sem pensar em outra coisa, até juntar 20 milhões de dólares. Pedir demissão.

Comprar um sítio em Jundiaí. Construir um galpão subterrâneo. Adquirir as mais modernas impressoras industriais. Contratar excelentes artistas e produtores gráficos. Instalá-los no bunker.

Descobrir quais são os dez países em que mais se estuda e se monta peças de Shakespeare. Contratar quadrilhas especializadas em roubo nos dez países. Surrupiar das bibliotecas públicas e privadas, lenta e discretamente, o maior número possível de edições de Hamlet. Mandá-las para Jundiaí.

Produzir versões fac-símile destes livros, idênticas em tudo às originais, do couro da capa ao amarelo das páginas, a não ser por um detalhe: a inclusão de uma frase no final do segundo ato, uma ameaça do príncipe da Dinamarca a Cláudio, assassino de seu pai: "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!". Devolver as edições adulteradas às bibliotecas. Queimar as originais.

Comprar anônima e paulatinamente, nos sebos destes mesmos países, todas as edições de Hamlet que se puder encontrar. Mandá-las para Jundiaí.

Produzir versões fac-símile destes livros, idênticas em tudo às originais, dos furos das traças às manchas de café, a não ser por um detalhe: a inclusão de uma frase no final do segundo ato, uma ameaça do príncipe da Dinamarca a Cláudio, assassino de seu pai: "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!". Doar as obras adulteradas aos mesmos sebos em que foram compradas. Queimar as edições originais.

Comprar o silêncio das quadrilhas e dos artistas gráficos. Se preciso for, pagar mais às quadrilhas para matar os artistas gráficos e, depois, exterminar as quadrilhas.

Contratar hackers para adulterar as versões on-line de Hamlet e incluírem a frase "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego!", no final do segundo ato. Comprar o silêncio dos hackers. Se preciso for, matar os hackers.

Sequestrar o crítico literário Harold Bloom. Mandá-lo para Jundiaí. Obrigá-lo a inventar uma explicação qualquer para a omissão do trecho "Ai, se eu te pego, ai, ai, se eu te pego", em diversas edições da peça. O erro de uma gráfica londrina, em 1756? A mão pesada de um editor marselhês, em 1809? Obrigá-lo a escrever um ensaio sobre Hamlet e citar, numa nota de rodapé, a omissão do trecho. Mandar o ensaio para a Oxford Literary Review. Dinamitar o bunker -com Harold Bloom dentro.

Esperar duas décadas.

Viajar para a Inglaterra. Reservar um camarote para assistir Hamlet, no Royal Shakespeare Theatre, em Stratford-upon-Avon. Mandar fazer um smoking sob medida. Contratar uma acompanhante eslava, loira, de olhos azuis e 1,82 m. Ir ao teatro com Nadia ou Milka ou Zora. Pedir uma garrafa de champanhe Cristal. Dar o último gole três segundos antes do final do segundo ato e ouvir o melhor ator da Royal Shakespeare Company recitar, para 1.500 homens de paletó e mulheres cobertas de brilhantes: "Oh, if I catch you, oh, oh, if I catch you!".

Voltar para Jundiaí e passar o resto dos meus dias criando curiós.

antonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata

AMANHÃ EM COTIDIANO
Pasquale Cipro Neto

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