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Pasquale Cipro Neto

Mis hermanos, nuestros hermanos

Muitos anos depois, o conhecimento de outra(s) língua(s) me une ainda mais a um dos meus filhos

HÁ QUASE quatro décadas, na primeira aula do curso de espanhol que fiz na universidade, a professora nos pôs em círculo e perguntou a cada um de nós (éramos 20) por que tínhamos escolhido a língua de Cervantes, Lorca, Borges, Benedetti, Neruda etc. Lembro bem que fui o último a falar. Todos os que me antecederam apontaram razões profissionais (a empresa em que trabalhavam, o mercado, o futuro, isto e aquilo etc.).

Eu disse que tinha escolhido espanhol por uma razão muito simples: o meu interesse por tudo o que diz respeito ao outro "lado" da América Latina (e à Espanha também, é claro), ou seja, o meu sentimento de latino-americanidade. Para mim, cultura é cultura, arte é arte, brilhantismo é brilhantismo, sensibilidade é sensibilidade, venham de onde vierem.

Levei tão a sério o estudo da língua espanhola e da literatura hispano-americana que transito pelos países vizinhos quase como um cidadão local. Santiago, Buenos Aires e sobretudo a minha amada Montevidéu são extensões da minha casa.

Pois bem. Mal podia eu imaginar que, muito tempo depois daquela aula, o conhecimento de outra(s) língua(s) teria papel decisivo num episódio vivido não por mim, mas por um dos meus filhos. Explico: um dos meus queridos filhos, Caio, engenheiro e oceanógrafo, estava na Antártida quando lá ocorreu o que ocorreu. Vou direto ao ponto: quando os bravos e heroicos membros da estação polonesa chegaram à nossa estação, em dois botes (a travessia foi feita no escuro, num mar quase congelado, em que é imenso o risco de que o gelo rasgue o bote), deram com a notícia de que Luciano Gomes Medeiros, nosso primeiro-sargento, estava muito ferido e precisava de socorro urgente. Prontamente os poloneses se dispuseram a levá-lo à estação deles, mas exigiram um voluntário brasileiro que falasse inglês e espanhol (nosso Medeiros só fala português).

Sem pestanejar, meu filho se ofereceu e, madrugada antártica afora e adentro, entrou num dos botes poloneses para amparar o nosso militar. Quando estavam quase chegando à estação polonesa (a travessia dura 50 minutos), o dia começava a clarear, e os helicópteros chilenos (que não voam à noite) já pousavam na nossa estação. Imediatamente um deles voou para a estação polonesa, apanhou Medeiros e Caio e voou para a estação chilena, cujo médico prestou os primeiros socorros a Medeiros, que já estava com hipotermia. O médico chileno decidiu que Medeiros tinha de ser operado e que a estação mais adequada era a russa. Lá foram eles (Medeiros, Caio e o médico), num helicóptero chileno, para a Bellingshausen, onde Medeiros foi operado por esse médico chileno, um médico e um enfermeiro russos e um médico uruguaio, "subtraído" da vizinha estação Artigas (tudo no Uruguai tem o nome do grande herói nacional). E meu filho participou de tudo, até o fim.

No sábado à tarde, sabe quem iniciou a volta para casa dos nossos pesquisadores, levando-os para Punta Arenas (Chile)? Nuestros hermanos argentinos, num hércules da gloriosa "Fuerza Aérea Argentina".

Transcrevo aqui um trecho do que meu filho escreveu em sua página: "Toda a admiração e gratidão aos que combateram o fogo, indistintamente. Toda a admiração ao espírito de cooperação de Chilenos, Russos, Uruguaios, Argentinos e especialmente aos Poloneses, pela valentia e disposição durante o resgate do Medeiros, do qual eu me orgulho de ter participado".

Somos locos por ti, América, somos locos por ti de amores. É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

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