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Francisco Daudt

O excesso

Nenhuma outra espécie ri, chora, ostenta, acumula bens ou consegue ser tão fanática como nós

NOSSA ESPÉCIE possui uma tendência exclusiva, que, receio, traz em si nossa própria perdição. É a húbris -o termo que os gregos usavam para a desmesura, o excesso, o exagero, o ardor, a ganância, o drama siciliano etc. O termo existe em português, pode conferir.

O fato é que nenhuma espécie ri como nós rimos (ou gargalhamos, ao ponto do que os franceses chamam de "rir maluco"); chora como nós choramos (aqui entra o exemplo do enterro siciliano, com rasgar de vestes, desmaios, a viúva se lançando dentro da sepultura do marido, o "Me enterra com ele!", berros e soluços); e goza como nós (está bem, concedo que os chimpanzés bonobos talvez nos superem nesse quesito, mas nunca ouvi falar que eles se estrangulassem para aumentar a intensidade do gozo).

Nenhuma outra espécie ostenta como nós para demonstrar poder e riqueza (um pavão perde de longe para Dubai ou uma festa de bar mitzvah); busca se entorpecer como fazemos (com uma quantidade crescente de substâncias); dramatiza como nós (aí moram a atração pela teledramaturgia e o engarrafamento na pista oposta, só para ver o desastre); acumula bens como nós (basta ver a resistência que a Lei da Ficha Limpa enfrentou, sem falar na necessidade de sua existência), e por aí vai -você pode bem pensar em outros exemplos.

Três atualidades me levaram a comentar o tema: a epidemia de crack, a China e o risco nuclear no Oriente Médio. A primeira fala de uma droga que vicia quase a partir do uso inicial. Concordo que a heroína também, mas ela é cara, e só dá barato nas primeiras vezes. Depois, o viciado a usa para não ter síndrome de abstinência e ficar "normal". O crack é barato (sua margem de lucro pode ser baixa, pois se vale da economia de escala), mantém a clientela cativa, torna-se o maior valor da vida de uma pessoa (se não o único) e tem um potencial destruidor dos costumes muito mais grave do que o ópio teve na China. É a droga das multidões. O pior é que ainda não sabemos como lidar com o problema social/pessoal que ela produz.

Falando da China. A ambição de ter um padrão de vida americano (da classe média alta para cima) - e seu ritmo de crescimento- sugere que ela vai chegar perto, se não ultrapassá-los. Ora, o planeta já não consegue dar conta de quem vive neste padrão americano, que dirá com a demanda chinesa entrando em cena. É claro que o planeta não corre riscos. Ele não está nem aí para nós. É apenas nossa espécie que corre. Atenção: querer sair da miséria não tem nada a ver com a húbris. É legítimo e sustentável.

E o Oriente Médio? Acrescento: ninguém consegue ser tão fanático como nós. Aquilo está virando um barril de urânio enriquecido. O ministério do "vai dar merda" adverte...

Veja você: a própria Grécia clássica, que nomeou a húbris, onde os filósofos faziam campanha pela moderação, não apenas os estoicos, mas os cínicos e epicuristas também, ela mesmo se perdeu pela ganância militar. Nem falo da Grécia atual, que está à beira de se perder por outro tipo de ganância.

fdaudt2@gmail.com

AMANHÃ EM COTIDIANO
Antonio Prata

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