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Minha História - Guto, 19

Tocando em frente

Aprovado para o curso de música de uma universidade particular da capital paulista, interno da Fundação Casa afirma que mudou de vida

(...)Depoimento a

AFONSO BENITES
DE SÃO PAULO

RESUMO Interno de uma unidade de Franco da Rocha da Fundação Casa (antiga Febem), Guto (nome fictício) começou na semana passada a cursar música em uma universidade particular da capital paulista. Ele vai escoltado para as aulas, mas a decisão pode ser revista pela Justiça. Dois anos e sete meses atrás, ele foi detido por latrocínio -Guto pode ficar na Fundação Casa por até três anos. A Folha não pode divulgar o nome verdadeiro do estudante por ele ainda ser interno da Fundação Casa.

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Quando era mais novo, me envolvi com pessoas que não devia. Foi por ganância que passei a praticar crimes. O que me trouxe para a Fundação Casa foi não saber ouvir as pessoas.

Achava que tudo tinha de ser do meu jeito e ponto. Era muito difícil mudar meu ponto de vista. Por mais que diziam para não entrar no crime, estava certo de que deveria entrar nesse mundo. Tinha gente que dizia para eu sair, mas não sabe como ele funciona de verdade. Quem é você para me falar do crime se nunca esteve nessa vida?

Para mim, era normal o que eu fazia e acabei sendo pego. Sempre me envolvi com os maiores de idade. Pensava que por ser menor de idade não teria problema. Acabei assumindo a bronca de todo mundo.

Não me arrependo do que fiz. Mas sei que é errado e não vou fazer de novo. Estava ciente do que estava fazendo. Agora chegou um ponto que tive que acordar para a vida.

Se eu disser que roubei por necessidade, "tô" mentindo. Não passava fome, minha mãe me criava bem. Só entrei no crime por ganância, queria coisas materiais. Um dos meus três irmãos entrou no crime, me incentivou, mas, quando ele saiu, não me ajudou nem tentou me tirar.

A mudança só aconteceu quando eu vim para a Fundação Casa. Tive alguns professores que começaram a colocar dúvidas em minha mente. Eles me perguntavam o que eu queria para mim. A música, o surfe ou o crime? Sempre gostei dos três. Fiquei um pouco indeciso, o crime ainda estava em mim. Acabei descartando o crime pouco a pouco. Não dá para fingir que não fez parte da minha vida. Aí, passei a gostar de mim. Aprendi a tocar percussão, compus canções e decidi pela música.

Nunca pensei em fazer faculdade de música, pensava em fazer um curso, pensava em ter um grupo. Aqui dentro até montamos um, Os Parceiros do Samba. Toco pandeiro, tamborim, tam-tam, não tem um instrumento de percussão que eu não toque.

Quando puder, quero montar um grupo de samba lá fora. Se bem que tenho pensado em montar algo na área do funk também. Mas quero tocar um funk consciente. Um som parecido com o que o Tim Maia fazia, com uma banda, uma batida diferente.

Tive a oportunidade de fazer o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio] para tentar o ProUni [programa que dá bolsas para alunos carentes em universidades privadas]. No início, não pensei que fosse passar. Mas, se eu passasse, o que teria para perder? Consegui, agora é estudar mais ainda e aprender algum instrumento novo.

Ninguém lá em casa tem faculdade, por isso minha família ficou supercontente. Falaram: "Você mudou". Eles disseram que aprendi a ouvir os outros. Você me pergunta se eu acho que mudei? Não acho, porque se achasse ainda teria dúvida. Tenho certeza de que mudei.

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