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Jairo Marques

A pança do Chico

O galã exibia uma pança igualzinha à dos mortais maridos, namorados, amantes, casos, amásios

LEVEI A mulher para ver o Chico cantando fora daquele CD que ela tanto escuta. Sim, levei, não assumo que fui também porque dele nem gosto de criar apego. Gosto é da Geni, da Rita, da Teresinha, da Beatriz, da Iolanda...

Quando o homem surgiu no palco, puxei um ensaio de ciúme do peito enquanto minha deusa entrava em uma espécie de transe de adoração pelo sujeito.

Tive de me conter para encarar aquele "olhos nos olhos" que ela tanto esperava como apenas uma coisa de fã e só isso mesmo.

Mas a minha vez de êxtase também chegaria -e logo nos primeiros momentos do show. Era verdade: o galã, que encanta ao cantar as agruras e doçuras do amor, exibia uma pança igualzinha à dos mortais maridos, namorados, amantes, casos, amásios, ficantes.

Se Chico Buarque, que é viciado em pelada aos finais de semana, que pode flanar pelas ruas de Paris ou caminhar pela orla carioca em uma tarde qualquer de segunda-feira, tem uma bela de uma barriga (nem venha chamar aquilo de protuberância do charme), um cadeirante como eu ter uma pança é praticamente regra do jogo.

Afinal, mal posso tocar o meu veículo por alguns metros de rua para "malhar" que lá vem alguém dizer: "Deixa que eu te empurro! Não se afobe, não, que nada é para já".

E onde estão as academias com pleno acesso em seus equipamentos e estrutura para eu fazer uns abdominais, para desabafar com as calorias e com o colesterol alto que, "apesar de você, amanhã há de ser outro dia"? Deve haver uma ou duas... no planeta.

Calçadão perfeitinho para "rodar" tranquilamente e perder uns quilos? Só pegando na mão de "nossa senhora da bicicletinha" para me dar equilíbrio e não me esborrachar no chão com tanta buraqueira. Resultado: pança.

Juntem-se a mim os sedentários por opção, os entrevados sem opção, os que ganharam barriga de herança genética, os tiozões rechonchudos convictos, os não adesistas à lipoaspiração.

Pronto: formou-se um exército napoleônico de barrigudos, não necessariamente de íris cor do topázio, que ganham um novo fôlego, com Chico, para enfrentar a ditadura dos abdomes capazes de servir de suporte para bater roupa.

Logo, enquanto a mulher vibrava com seu ídolo que cantara uma de suas favoritas, "Todo Sentimento", eu me deliciava pensando que o querubim safado de "Até o Fim" era mesmo imperdoável e tinha virado sua flecha era para o próprio compositor que, até então, para mim, era "um gato" cujo mundo era detefon, almofada e trato.

Depois de quase duas horas de adoração, de gritos, de suspiros, de palmas e de contemplação a Chico (e à sua pança), a banda sai de cena levando consigo o homem da "construção" mais polêmica da música brasileira. Mas a plateia, por sua vez, se mantinha mais agitada que gemada de um ovo só.

"Será que ele volta, amor? O Chico é tão lindo", disse a mulher. Eu, completamente satisfeito, inclusive com a autoestima nas alturas, pensei: "Não é por estar na sua presença, meu prezado rapaz, mas você vai mal. Mas vai mal demais. São seis horas o samba tá quente. Deixe a morena com a gente. Deixe a menina sambar em paz".

jairo.marques@grupofolha.com.br
@assimcomovc

AMANHÃ NA FOLHA
Antonio Prata

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