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Millôr 1923-2012

Considerado um dos maiores frasistas do Brasil, fundador do semanário "O Pasquim" se consagrou como chargista, tradutor e dramaturgo

Reprodução

DO RIO

"Todo homem nasce original e morre plágio", dizia Millôr Fernandes. Exceção a sua própria regra, o escritor, jornalista e artista carregou sua originalidade até morrer, anteontem à noite, aos 88 anos, em seu apartamento em Ipanema, na zona sul do Rio.

Millôr sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico em 31 de janeiro de 2011. Ficou internado até novembro, quando foi transferido para casa. Morreu às 21h de anteontem, de falência múltipla de órgãos. Com ele estavam sua mulher, Wanda Rubino, 84, e sua filha Paula.

"Foi suave, graças a Deus", disse seu filho Ivan Fernandes, sobre a morte do pai. "Falávamos com ele e ele não abria os olhos", disse seu irmão, Hélio Fernandes.

Um dos maiores frasistas do país, artista autodidata, Millôr destacou-se em inúmeros ofícios (jornalista, desenhista, escritor, pintor, tradutor, autor teatral, apresentador de TV), deixando uma vasta obra que ilustra sete décadas da vida cultural, social e política do Brasil.

Segundo Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM, Millôr deixou duas peças inéditas: "Últimos Diálogos (sobre uma Ideia de Walter Salles)", finalizada em 2010, e "A Calça: Transubstanciação de 'Die Hose'", versão da obra do alemão Carl Sternheim.

A PAZ DA DESCRENÇA

Millôr nasceu Milton Viola Fernandes, no Rio de Janeiro, em 27 de maio de 1924, segundo sua certidão -outras fontes apontam a data de 16/8/1923 ("Há desencontros de opinião na família", escreveu o próprio).

Anos depois, quando viu seu registro de nascimento, admirou-se com a caligrafia do escrivão, que dava ao T de seu nome o aspecto de um L e ao N a aparência de um R -e Milton virou Millôr.

Filho do espanhol Francisco Fernandes e da brasileira Maria Viola Fernandes, nasceu e foi criado no subúrbio carioca do Méier.

Perdeu o pai ainda bebê e a mãe aos dez anos. "Sozinho no mundo, tive a sensação da injustiça da vida e concluí que Deus em absoluto não existia", escreveu. "Mas o sentimento foi de paz, a paz da descrença."

Em 1938, entrou no Liceu de Artes e Ofícios e começou a trabalhar na revista "O Cruzeiro". Ali, se tornaria um dos principais nomes do jornalismo e das artes no Brasil.

Era "desses boêmios cariocas capazes de sair do bar às três da manhã, estar na praia às oito, na máquina de escrever às dez", em descrição que usou para si e para o jornalista e amigo Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta.

A praia era uma de suas predileções. Morador de Ipanema desde 1954, colocou o Posto Nove e o frescobol (esporte que afirmava ter inventado) no mapa. Bom nadador, dizia ser "atleta frustrado".

Dificilmente se diria frustrado em outras áreas: foi premiado como desenhista (ao lado de seu ídolo Saul Steinberg), requisitado como tradutor (de Shakespeare, Molière, Sófocles, Bernard Shaw), autor de peças célebres como "Liberdade, Liberdade" (1965), uma das obras pioneiras do teatro de resistência ao regime militar.

Publicou mais de 50 livros a partir de 1946, boa parte compilando textos humorísticos e desenhos feitos para a imprensa, dentre eles "Fábulas Fabulosas" (1964).

Seu humor crítico lhe traria problemas com políticos, desde o presidente Juscelino Kubitschek (que censurou seu programa na TV Tupi, após piada com a primeira-dama) até os militares que atacaram "O Pasquim" -que ajudou a criar- na ditadura.

Fiel a seus princípios ("Desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal"), Millôr não buscaria indenização pelas perseguições durante o regime militar e criticou amigos que o fizeram. "Quer dizer que aquilo não era ideologia, era investimento?", disse, à época.

A política causaria o fim da primeira fase (1968-1982) na revista "Veja", quando se negou a retirar o apoio a Leonel Brizola nas eleições para governador do Rio em 1982. Em 2004, voltaria à "Veja".

Na Folha, assinou uma coluna semanal, no caderno dominical "Mais!", entre julho de 2000 e agosto de 2001.

No período, escreveu texto que lhe rendeu processo do deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP), após dizer que seu projeto de restringir termos estrangeiros na língua portuguesa era "uma idioletice".

INDECENTEMENTE FELIZ

Nos últimos anos, Millôr repetia em entrevistas que era "indecentemente feliz".

Casado com Wanda Rubino desde 1948 -mãe de Ivan, 58, e Paula, 54-, manteve longo relacionamento com a jornalista Cora Rónai, que postou em seu blog ontem: "Millôr foi embora. O dia mais triste da minha vida".

Em uma de suas máximas, definiu "monogamia": "A capacidade de ser infiel à mesma pessoa durante a vida inteira". "Ele sempre teve namoradas, mas nunca saiu de casa", disse seu irmão, Hélio.

Millôr será velado hoje, às 10h, no Memorial do Carmo, no Caju (zona portuária do Rio), com acesso aberto ao público. A cremação, fechada, será às 15h, no mesmo local.

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