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Barbara Gancia

A arte de chamar atenção

Meu temor é abrir o jornal na semana que vem e dar de cara com uma coluna chamando a todos de burros

Também quero celebrar Mil­lôr. Mas em vez de lembrar sua capacidade de nos levar das profundezas ao riso em duas línguas, prefiro virá-lo do avesso.

Se Shakespeare falasse português teria o desprendimento de tradu­zir "Fechou-se em copas" para "He shut himself in Hearts"? Ou a suti­leza de ver na frase "Fazer de conta" a tradução "To make a bead"?

Pois Millôr era, segundo sua ver­são, "of the turned shovel", da pá virada. Podia dar-se ao luxo de alter­nar seriedade e leveza com o que bem en­tendesse. E eu nunca ouvi contar que tenha perdido a estribeira com seu público.

Aliás, estou há quase 30 anos no ramo e não me consta que parte dos atributos do colunista seja chamar para o pau, falar de cima para baixo, dar lição de moral, armar arapuca ou esculachar o próprio leitorado.

E olha que eu sou "Crazy Sperm". E não dou aula de filosofia, você está ligado, não está, meu caro leitor? Não tenho o costume de lidar com aluno, não tenho uma base conceitual para lá de elevada nem sou uma das mais respeitáveis filósofas do cenário acadêmico nacional.

Porém, olha só, vivo de ser colunista há suficientes invernos para saber que há de se ter um certo temperamento para cumprir a função.

Ao longo do tempo, e nós estamos falando de anos, você fatalmente acaba ficando completamente ex­posto. Quem quiser durar no mé­tier, deve estar preparado para ter suas intenções testadas, pois fatal­mente elas estarão visíveis aos olhos do público. Não adianta vir com artimanhas nem ser mestre na matéria sobre a qual está falando.

Se não for absolutamente despido de truques, o cliente vai cair matan­do. Essa é a beleza da coisa. Espe­cialmente nos dias de hoje, em que leitor fala de igual para igual com presidente da República, ombudsman e o raio que o parta.

Colunismo é sacerdócio, não exis­te espaço para traquinagem. Não adianta o sujeito querer dar uma de Jorge Kajuru do jornalismo im­presso e ter um sonho secreto de ser assassinado em praça pública só para ressuscitar como mártir ao terceiro dia e continuar a pregar seu evangelho aos berros. Chamar atenção é uma droga mais poderosa do que a heroína.

Se eu assinasse coluna no "Diário de Pinheiros" (com todo respeito à publicação), será que eu teria tan­tos leitores quantos tenho aqui? É esse tipo de questionamento que o colunista deve começar a fazer quando o fracasso começa a lhe su­bir à cabeça ou quando ele se mete em falsas polêmicas que em nada con­tribuem para a discussão cultural.

Não sei patavina sobre filosofia e imagino que as cenas de canibalis­mo descritas por meu colega Pondé na semana passada na "Ilustrada" te­nham tido a ver com a simbologia do Sofrimento e da Carne. Meu te­mor é abrir o jornal na próxima se­gunda e dar de cara com uma colu­na sua chamando a todos os leitores de burros por não terem se dado conta de que o penoso relato se re­feria a uma passagem manjada da Bíblia ou da mitologia.

Não sei direito qual o objetivo de Pondé, mas não me parece que es­teja inaugurando uma nova lingua­gem. No mínimo, denota falta de poder de síntese ao estender o as­sunto de uma semana para outra.

Além do mais, esse mergulho no sensacionalismo evidentemente não lhe fez bem aos nervos. Peço que você volte a ser quem era, Pon­dé. Em vez de se pautar exclusiva­mente pelo queixume dos leitores, que tal escrever sobre as belas para­gens que visita nas viagens a que ser­ve de guia cultural? Olha lá que o Millôr vem puxar o seu pé!

barbara@uol.com.br
@barbaragancia

AMANHÃ EM COTIDIANO
Walter Ceneviva

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