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Jairo Marques

Responsabilidades e borboletas

Ser pai após os 60 anos tem se tornado comum; a expectativa de chegar aos cem todo pimpão é real

MEU GRANDE amigo Luizão, que em janeiro do ano que vem vai completar 65 Carnavais e poderá pagar menos Imposto de Renda, está sem dormir direito há duas semanas.

Não, ele não está com aquela insônia típica de alguns vovôs. Ele acorda mesmo é para ajudar na troca de fraldas e para fazer um mimo em Luizinho, seu bebê recém-nascido.

Antes do desabrochar do pequeno, o fotógrafo mais safo que já conheci na vida -não só seduz qualquer um a posar para um retrato como ajuda o repórter a fazer as melhores perguntas- era a cara da preocupação mais pura (e legítima).

Iria conseguir dar educação ao moleque? Iria acompanhar o ritmo dele? Iria ter paciência com os choramingos diuturnos? Iria saber manejar com ele o "iPad ad infinitum"?

No momento em que a vida acenava ao meu amigo com a sedução mansa de um bonezinho e uma vara de pescar, um vento bateu mais forte e jogou em sua cacunda uma nova responsabilidade.

Obviamente, um bebê que chega também é uma alegria, uma realização, um "ai, que gracinha". É um aceno de novas possibilidades para os velhos problemas, para transformar a alma desacorçoada com a raça humana em pura esperança de um futuro melhor.

Ser pai com mais de 60 anos tem se tornado comum. O acesso à pilulazinha que leva felicidade para debaixo dos lençóis é amplo, as relações entre pessoas com diferentes faixas etárias não é algo tão lazarento como no passado, a expectativa de chegar aos cem anos todo pimpão é real.

O que ainda não é assim, totalmente resolvido e deslumbrante, é ter de assumir novos e desafiadores comprometimentos para o dia a dia em um momento em que muita gente já quer mesmo é descer a ladeira e estirar o corpo na sombra de uma prainha qualquer.

O cineasta italiano Nanni Moretti põe o bode na sala diante dessa questão -e de outras- com seu formidável "Habemus Papam", ainda em cartaz em algumas salas pelo país.

"Que Deus me livre, nesta altura da jornada terrestre, ter de encarar a 'roubada' de ser o sumo pontífice", refletiam os cardeais da película, todos bem velhinhos, momentos antes da votação para a escolha de um novo líder máximo dos católicos, que poderia ser qualquer um dos votantes.

E o filme é engraçadíssimo do começo ao fim. Todo ele em torno do enrosco papal um tanto inusitado. Ao mesmo tempo, a história me despertou a cuca para pensar e ir longe em um debate muito atual por bandas latinas: os mais velhos assumindo ou reassumindo a labuta de tocar o rumo da prosa da humanidade adiante.

Cada vez mais, são os ditos velhos que proveem famílias, que administram empresas, que comandam países, que curam doenças. Muitos com a mesma presteza com que meu amigo Luizão há de cuidar de Luizinho.

Mas, por trás dessa realidade, há o ônus de não poder jogar dominó, deitar na rede por longas horas, ler um livro chato até acabar, ficar por dias imaginando, igual ao poeta Manoel de Barros, "que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza, um mundo livre aos poemas".

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