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Jairo Marques

Por um caminho suave

A calçada portuguesa não flerta com cadeirantes, com carrinhos de bebês, e com velhinhos desequilibrados

Chega a me dar um "siricotico" quando vou me aproximando dela. Grudo o esqueleto na cadeira, seguro na mão de nossa senhora da bicicletinha, pedindo equilíbrio, e firmo o pensamento para que meu juízo não fuja de uma vez enquanto atravesso mais uma tenebrosa calçada portuguesa da cidade.

Na real, raramente o que se vê nos grandes centros brasileiros é mesmo um passeio ao estilo lusitano. Por aqui, são cacarecos de pedras remendadas que supostamente formam algum desenho no chão.

Mas, seja como for, a calçada portuguesa não flerta com cadeirantes, com mães que empurram carrinhos de bebês, com velhinhos meio desequilibrados e meio prejudicados das vistas, com as drag queens e as mulheres com salto alto nem com todos os demais cambaleantes da nação.

Parecem lindas e harmoniosas, vistas de longe, as ondinhas do calçadão da orla de Copacabana, redesenhadas na década de 1970 pelo genial Burle Marx. O problema é que, em vez de quebrarem na praia, elas quebram é nos tornozelos, nos joelhos e nos cotovelos dos desavisados de sua conservação capenga e do seu potencial deslizante.

A meu ver, a arquitetura não faz sentido se não se harmoniza totalmente com o homem. Rococó aplicado a algo que precisa ser usual, seguro e convidativo tende a não funcionar. Tomara que, nessa reconstrução por que a capital fluminense passa, alguém se tenha lembrado de olhar para baixo em vez de ficar apenas de nariz empinado.

Em algumas cidades históricas da Europa, com ruas feitas de pedra, parte do caminho foi substituído por um plano lisinho justamente para que todos possam desfrutar de suas delícias indo daqui para lá com tranquilidade.

Em Portugal, são artesãos especialistas que vão montando a famosa calçada, pedra por pedra, esmerando-se até formar mosaicos ou figuras "maraviwonderfuls", pouco espaçadas e firmes no piso.

Porém, os calceteiros, como são chamados esses artistas, são cada vez mais raros. Com todo o mundo caminhando com a cabeça na Lua, o que menos atrai o olhar é o chão.

No Brasil, é o seu João "faz tudo" quem tenta juntar as peças e dar a elas algum sentido parecido com o artístico. Isso depois da 15ª interferência da companhia de gás ou de esgoto que precisou dar uma "quebradinha" básica para fazer a necessária manutenção do sistema.

Por isso tudo, que achei o máximo a medida tomada pela Prefeitura de São Paulo em relação aos passeios públicos: manda ver nos blocos de concreto. São muito "de boa" para o caminhar, o rodar, o "muletar", o sapatear. E para a manutenção e conservação, afinal, "lavou tá novo". Abaixo a pedra portuguesa!

Não é à toa que Nova York é uma das cidades onde o povo mais pira querendo andar sem parar de "west" para "east". Com calçadas planas e largas, sem obstáculos e ameaças à integridade da bacia humana, é uma delícia saracotear por lá.

Na infância, fui alfabetizado com a ajuda da cartilha "Caminho Suave". Talvez dois ou três leitores também o tenham sido. A danada me garantiu para a vida toda um tesouro vindo de Portugal, que é a minha língua falada, escrita e tão repaginada. Logo, abrir mão de pedrinhas sorrateiras não há de causar inimizades, ora, pois.

jairo.marques@grupofolha.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Antonio Prata

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