Índice geral Cotidiano
Cotidiano
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

Pasquale Cipro Neto

"Thor tem Ferrari apreendida"

O verbo-ônibus nada mais é do que aquele que se emprega como sinônimo de quase todos os outros

Estava num site, dia desses: "Thor tem Ferrari apreendida". O redator quis dizer que uma Ferrari de Thor foi apreendida. Se levássemos ao pé da letra esse título, poderíamos entender que a Ferrari que Thor possui já foi objeto de apreensão. Há algum tempo, comentei neste espaço outro título, pior, bem pior, muito pior: "Museu tem acervo roubado". Sem comentários, não?

O caro leitor talvez nunca tenha ouvido falar de "verbo-ônibus", mas, na nossa imprensa, "ter" é um desses tais verbos. O verbo-ônibus nada mais é do que aquele que se emprega como sinônimo de praticamente todos os outros. Como é pequeno (apenas três letras, três toques), o verbo "ter" cabe em qualquer lugar, ou seja, é pau para toda obra. Nos títulos, "ter" substitui verbos "maiores", ainda que o sentido da frase seja claramente prejudicado ou alterado, como se vê em frases como "Metalúrgicos têm liminar" (em que "têm" entra no lugar de "obtêm" -uma coisa é noticiar que os metalúrgicos têm, já têm a tal liminar; outra é noticiar que eles obtêm, ou seja, obtiveram, conseguiram). Outro uso comum e pouco elegante se vê em "São Paulo tem dia quente" (em vez de "Dia é/será quente em São Paulo").

Bem, desse festival de usos no mínimo infelizes e inadequados do verbo "ter" nos títulos, passa-se rapidamente para o emprego generalizado. Daí surgem maravilhas como esta, também extraída de texto (e não título) jornalístico: "A mulher teve o marido entre os 12 mortos". Pobre mulher! Pariu o marido no meio de uma carnificina. O redator quis dizer que um dos 12 mortos era marido da tal mulher, ou que o marido dela está/estava entre os 12 mortos ou é/era um dos 12 mortos.

Posto isso, aproveito para responder a um leitor que me perguntou sobre a conjugação da família do verbo "ter". Diz ele que, num concurso, deu como errada a construção "No caso de ele obter a liminar...". Na visão do leitor, no lugar de "obter" deveria ter sido empregada a forma "obtiver". "Não se trata de uma oração condicional, ou seja, não equivale a 'Se ele obtiver'?", pergunta o leitor.

Sim, em termos semânticos, ou seja, de significado, há mesmo equivalência entre "No caso de Fulano obter a liminar" e "Se Fulano obtiver a liminar", mas as estruturas são diferentes. No primeiro caso, temos (perdoem-me os leitores pelo emprego de uma expressão técnica) a locução prepositiva "No caso de", que não leva o verbo para o futuro do subjuntivo ("obtiver"); essa locução mantém o verbo no infinitivo mesmo, por isso a forma "obter" ("No caso de Fulano obter a liminar"; "No caso de Beltrano dizer a verdade"; "No caso de Fulana não poder comparecer").

Teríamos a forma "obtiver" se tivesse sido empregada a conjunção "se", como se vê em "Se ele estiver", "Se ela fizer", "Se ela souber", "Se ele puder", "Se ele vier" etc.

Convém lembrar que a numerosa família do verbo "ter" (obter, deter, manter, reter, entreter, abster, entre outros) se conjuga, em todos os tempos e modos, pelo verbo "ter", ou seja, se dizemos "Se ele tiver sorte", diremos "Se ele detiver os ímpetos", "Se ela retiver os alunos", "Se ele entretiver as crianças" etc.

Na língua do dia a dia e mesmo na linguagem escrita, é cada vez mais comum o emprego desses verbos como se fossem regulares ("Se ele deter os ímpetos", "Se ela reter os alunos", "Se ele entreter as crianças"). Em se tratando do registro formal da língua, o que ocorre mesmo é a flexão desses verbos de acordo com o que foi citado no parágrafo anterior. É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.