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Pasquale Cipro Neto

'Minha terra tem macieiras da Califórnia'

Nada disso. O buraco é mais embaixo. Não se combate tontice com lei. É preciso mudar a mentalidade

O GENIAL poeta brasileiro Murilo Mendes (Juiz de Fora, 1901-Portugal, 1975) escreveu inúmeras maravilhas, entre as quais uma das tantas paródias da célebre "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias. A de Murilo começa assim: "Minha terra tem macieiras da Califórnia / Onde cantam gaturamos de Veneza".

É claro que "minha terra" não tem macieiras da Califórnia, muito menos gaturamos de Veneza. Temos gaturamos, sim, mas não de Veneza. O gaturamo é uma "ave passeriforme, comum no Leste brasileiro, com ocorrências do leste da Venezuela ao Nordeste da Argentina" ("Houaiss").

Ao dizer "minha terra tem macieiras da Califórnia", Murilo obviamente quis dizer "minha terra não tem macieiras da Califórnia" (mas gostaria de tê-las ou atribui às que tem ar estrangeiro, mais "sofisticado").

No poema de Murilo, os gaturamos da nossa terra são "de Veneza", ou seja, não são (mas...). O fato é que, como se vê pelo poema (escrito há décadas), o deslumbramento tupiniquim com o que é estrangeiro é coisa velha (e, convenhamos, não é exclusividade brasileira -são muitos os estudos sobre o que se chama de "despaisamento", adaptação para o português do termo francês e universal "dépaysement", já que os franceses talvez sejam os precursores desses estudos). Também é bom dizer que nem todo "dépaysement" é fruto de deslumbramento ou tontice.

No poema de Murilo, o exílio, antes de ser físico, é espiritual, mental, psíquico, cultural -o poeta "denuncia" o colonialismo de que éramos e somos impregnados. Convém lembrar que, tal qual o escritor e jornalista Ivan Lessa, falecido no último fim de semana, o poeta e professor Murilo Mendes era um autoexilado. Murilo foi professor universitário em Pisa e em Roma, onde conviveu com a professora e escritora italiana Luciana Stegnano Picchio, grande divulgadora da nossa literatura. Luciana é autora da bela obra " La Letteratura Brasiliana".

Convém lembrar os versos finais da "Canção do Exílio" de Murilo: "Nossas flores são mais bonitas / Nossas frutas mais gostosas / Mas custam cem mil réis a dúzia. / Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade / E ouvir um sabiá com certidão de idade!". O "sabiá com certidão de idade" obviamente é um sabiá legítimo (e não uma fraude, como os "gaturamos de Veneza").

Posto (tudo) isso, chego ao ponto: a matéria de Giba Bergamim Jr. publicada na edição do último domingo da Folha ("Nome composto em inglês vira febre em prédios de São Paulo"). Os argumentos do mercado imobiliário são de arrepiar. Os profissionais da área dizem que os nomes compostos estrangeiros são resultado da globalização e da estratégia de marketing. Elaiá!

Nem de longe concordo com os que pensam que isso deveria ser visto como "afronta ao país" e, consequentemente, deveria ser objeto de lei que proíba o uso de termos estrangeiros etc. e tal. Nada disso. O buraco é mais embaixo. Não se combate tontice com lei. É preciso mudar a mentalidade, o que não se consegue com leis.

Imagino que haja mesmo uma fatia da sociedade tonta e oca a ponto de escolher o edifício pelo nome necessariamente estrangeiro, mas alivia-me o que disse um dos personagens da matéria de Giba Bergamim. Refiro-me à fala de Luís Fernando Marchioli, morador do edifício Adesso, na Mooca (tinha de ser alguém da minha querida República da Mooca!): "Ninguém escolhe o apartamento por causa do nome. Bobagem. Vi que o tamanho era bom e a localização também. É o que importa". E viva a Mooca! É isso.

inculta@uol.com.br

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