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Pasquale Cipro Neto

'A capacidade de o Brasil produzir...'

Quer um belo exemplo de "ultracorreção"? Lá vai: "Demorei porque houveram problemas no trânsito"

O CARO leitor já ouviu falar de "ultracorreção"? Vejamos como o "Houaiss" define o termo: "Fenômeno que se produz quando o falante estranha, e interpreta como incorreta, uma forma correta da língua e, em consequência, acaba trocando-a por uma outra forma que ele considera culta; nessa busca excessiva de correção (...), nota-se em geral o temor do falante de revelar uma classe de origem socialmente discriminada; hipercorreção, hiperurbanismo".

Quer um belo exemplo de "ultracorreção"? Lá vai: "Demorei porque houveram problemas no trânsito". Além dos problemas no trânsito, houve um de natureza gramatical: a forma verbal "houveram". Quando é empregado com o sentido de "existir" ou com o de "ocorrer", "acontecer", o verbo "haver" não sai do singular. No lugar de "houveram" se emprega "houve" ("...porque houve problemas...").

Pois bem. Passemos ao trecho que está no título desta coluna, que foi dito num importante jornal da televisão brasileira há poucos dias. Que lhe parece a forma "A capacidade de o Brasil produzir"? É boa? Ou seria melhor trocá-la por "A capacidade do Brasil produzir"?

O caso lembra a velha polêmica que envolve a frase "Está na hora da (de a) onça beber água". Há quem diga que, quando o infinitivo ("beber", no caso) é regido por preposição ("de", no caso), não se funde a preposição com o artigo ("a", no caso) ou pronome reto ("ele/s", "ela/s"). De acordo com essa "tese", a única forma aceitável seria "Está na hora de a onça beber água".

O uso efetivo da língua (oral e escrita) nos mostra que a natural contração da preposição com o artigo ou pronome (imposta pelo costume e, sobretudo, pela eufonia) justifica plenamente o emprego de "da" em "Está na hora da onça beber água".

Mais do que simples questão de "certo ou errado", o fato nos leva a uma reflexão estilística. Quando não se faz a fusão, talvez se dê ênfase tanto à preposição quanto ao sujeito; quando se faz a fusão, talvez essa carga enfática se neutralize.

No padrão formal culto, é inequívoco o predomínio da forma não contraída, o que tem levado muita gente boa a perpetrar equívocos ou a registrar exemplos de "ultracorreção". Já se chegou à barbaridade de "O carro de o diretor foi destruído". No trecho do telejornal, também houve "ultracorreção". Na ânsia de não "errar", o redator optou por "A capacidade de o Brasil produzir". Se você tivesse de falar (em primeira pessoa) algo sobre a sua capacidade de produzir alguma coisa, como faria isso, caro leitor? Posso palpitar? Acho que você diria isto: "A minha capacidade de produzir...". Pois bem. Se alguém contestasse e quisesse dizer que a capacidade não é sua, mas de outra pessoa, talvez ouvíssemos isto: "A capacidade não é sua, não; é de Fulano". Uma terceira pessoa, que tivesse acabado de chegar e que não soubesse o que se passava ali, poderia perguntar: "Capacidade de quê?"

Já chegou lá, caro leitor? O que temos na verdade é a palavra "capacidade" regendo duas ocorrências da preposição "de": a que introduz o termo que representa o "dono" da capacidade e a que introduz o verbo ("produzir", no caso).

Moral da história: nem "capacidade de o Brasil produzir", nem "capacidade do Brasil produzir". A construção que traduz o que efetivamente se quer dizer é "a capacidade do Brasil de produzir". É isso.

inculta@uol.com.br

AMANHÃ EM COTIDIANO
Barbara Gancia

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