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Pasquale Cipro Neto

'Paralelismo e oposição semântica'

É claro que o narrador foi irônico, ou seja, quis dizer que essas meninas foram criadas num mundo fútil...

Nos vestibulares de ponta (Unicamp, Fuvest e Unesp, entre outros) o paralelismo é tema recorrente. Vejamos um exemplo rápido e simples disso tomando por base uma frase incluída numa questão da Fuvest em que se abordava o tema: "Funcionários cogitam nova greve e isolar o governador". O que cogitam os funcionários? Em palavras curtas, cogitam duas coisas, cujos núcleos são "greve" e "isolar".

Que tal o par "greve"/"isolar"? Ajudo: "greve" é substantivo; "isolar" é verbo. Para que se estabeleça o paralelismo, é preciso que os dois complementos de "cogitar" sejam expressos por palavras da mesma classe.

Lá vão duas das redações possíveis: a) "Funcionários cogitam entrar em greve novamente e isolar o governador" (temos aí dois verbos: "entrar" e "isolar"); b) "Funcionários cogitam nova greve e isolamento do governador" (temos aí dois substantivos: "greve" e "isolamento").

Vejamos outro caso, também abordado numa questão da Fuvest, que pedia aos estudantes que analisassem o seguinte fragmento de "O Crime do Padre Amaro", de Eça de Queirós: "A marquesa de Alegros ficara viúva aos 43 anos, e passava a maior parte do ano retirada na sua quinta de Carcavelos. (...) As suas duas filhas, educadas no receio do Céu e nas preocupações da Moda, eram beatas e faziam o chique, falando com igual fervor da humildade cristã e do último figurino de Bruxelas". O enunciado era este: "Paralelismo sintático e oposição semântica são recursos usados na caracterização das filhas da marquesa de Alegros. Transcreva do texto os segmentos em que isso ocorre".

Notamos paralelismo nas seguintes passagens: a) "...educadas no receio do Céu e nas preocupações da Moda" (o paralelismo se dá entre "no receio..." e "nas preocupações...", que são os "lugares" em que as meninas foram educadas); b) "...falando com igual fervor da humildade cristã e do último figurino de Bruxelas" (o paralelismo se dá entre "da humildade..." e "do último figurino...", que são as duas coisas de que as duas meninas falavam com igual fervor).

No primeiro caso, não há ruptura morfossintática do paralelismo, já que o par é formado por palavras da mesma classe ("receio" e "preocupações", que são substantivos abstratos). No segundo caso, temos "humildade" e "figurino", que também são substantivos, mas o primeiro é abstrato, e o segundo, concreto. Pois é aí que está a pista para resposta à questão da Fuvest, que, é bom lembrar, fala em "paralelismo sintático e oposição semântica". Essa oposição semântica (de sentido, significado) se dá nos dois casos. No primeiro caso, entre "Céu" e "preocupações da Moda" (note a maiúscula empregada por Eça); no segundo caso, entre "humildade cristã" e "figurino de Bruxelas".

É claro que o narrador foi irônico, ou seja, quis dizer que essas meninas foram criadas num mundo fútil, superficial, em que as preocupações espirituais ou religiosas são de fachada. Aliás, convém lembrar que o que acabo de afirmar diz respeito ao segundo item da questão da Fuvest, que era o seguinte: "Identifique os efeitos de sentido que decorrem do emprego de tais recursos". Como se vê, Eça usou o recurso com a sua habitual maestria.

Outro mestre no emprego da ironia é Machado de Assis: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis" (de "Memórias Póstumas de Brás Cubas"). A esta altura, acho que já não preciso explicar, preciso? É isso.

inculta@uol.com.br

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