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'Ele levava no bolso o alvará de soltura e sua lista de desejos'

Em seu depoimento à Folha, mulher de Cabo Bruno descreve como foram seus últimos dias com o ex-PM

DE SÃO PAULO

Foram 35 dias que valeram por 35 anos. Vivemos intensamente cada momento desde que Bruno conquistou sua liberdade, em 23 de agosto deste ano. Não paramos.

Ele tinha uma vontade muito grande de viver, adorava a natureza, ouvir os pássaros e dava valor a pequenas coisas. Um simples papel escrito um "eu te amo" para ele era como se fosse o maior dos presentes. Guardava pra sempre.

Como na prisão não podia ter, fazia questão de andar sempre com uma carteira de documentos no bolso.

Dentro dela, seu alvará de soltura. Ele tinha o maior orgulho daquele papel a ponto de plastificar o original e carregar uma cópia sempre consigo. "Levei 27 anos para conquistá-lo", dizia.

E reclamava, em tom de brincadeira: "Nas minhas fugas, eles sempre me paravam. Agora, que tenho o alvará, ninguém me para mais".

Dizia, brincando: "Se casar comigo, minha herança são 120 anos de prisão".

Outro papel que carregava na carteira era uma lista com dez sonhos que queria realizar antes de morrer. A cada realização, pegava a caneta e riscava o sonho. Estudamos a lista nos anos de prisão.

Estava muito feliz por Deus ter lhe permitido realizar todos eles. Até perguntei se faria uma nova lista. Disse-me que não. "Agora, Deus faz de mim o que ele quiser. Ele realizou todos os meus sonhos."

Entre seus desejos estava andar de trem e metrô lotados e ficar preso num trânsito caótico. Como ficou mais de 20 anos isolado, por ter sido um prisioneiro "especial", tinha uma necessidade de estar com gente. "Eu quero ver gente, quero ser empurrado."

E conseguimos. No metrô, ainda ficaram bravo com ele. "Larga a mão da mulher. O metrô lotado desse jeito e esse velhinho quer andar de mão dada com a mulher."

Ele não respondeu nada. Só disse para mim. "Agora me chamam de velhinho."

EXEMPLO

O último sonho da lista, ele conseguiu realizar na terça-feira anterior à sua morte. Esteve num batalhão da Polícia Militar em São Paulo para falar a policiais. Queria dizer que, se havia sido exemplo de desvio de conduta para a corporação, agora era exemplo de que a recuperação é algo possível.

Isso era muito importante para ele diante da tristeza que sentiu ao saber que, nos quarteis, chegaram a passar vídeos da história dele como exemplo de um mau policial.

Bruno não achava, naquela época, que estivesse fazendo o mal. Se via como um dos personagens de Charles Bronson, que saiam à noite para caçar e matar bandidos. Fazer justiça com as próprias mãos.

Não quero com isso justificar o que ele fez. Estou apenas contando como foi.

Por isso é besteira quem diz que ele tinha um esquadrão da morte, ou grupo de extermínio, ou que tinha um motorista. Ele gostava de andar sozinho como Bronson fazia nos filmes. Tinha um Maverick e um Opala pretos.

Também não é verdade que recebia dinheiro de comerciantes. O que fazia, como me contou, era, por exemplo, ficar escondido por três dias dentro do balcão de um comércio em que o dono tinha sido assaltado várias vezes.

Era um senhor de idade que os criminosos agrediam a cada roubo. Estava com o rosto todo machucado quando contou a história para o Florisvaldo. Ele ficou escondido até o grupo chegar.

Antes de ser preso, Bruno quis parar com tudo. Iria atender a um pedido do pai. "Pelo amor que você tem em Deus, que você tem em seu pai", ouviu em Catanduva.

A família dele é de lá. Da mãe, dona Zefa Verdureira, herdou o gosto por plantar.

Quando voltou a São Paulo, porém, seus colegas avisaram-no que um homem estava rondando o lugar havia três dias para tentar matá-lo. Aí, foi ele quem armou uma emboscada e pegou o homem. Chorou muito naquele dia. Viu que tinha ido longe de mais para poder parar.

Admitia ter matado umas 20 pessoas. "As outras, colocaram na minha conta. Tinha gente que matava e se apresentava como Cabo Bruno."

Ele assumia, pois não faria muita diferença.

IMPRENSA

Bruno não queria dar entrevistas quando saiu da prisão. Achava que isso poderia parecer uma provocação. Não queria ficar se exibindo em frente das câmeras, como havia feito no passado.

Os jornalistas não entenderam isso. Os policiais me disseram que a imprensa tem metade da culpa pela morte do Bruno. Concordo com eles. Ficaram cutucando.

ASSASSINOS

Bruno encontrou Deus sozinho. Recebeu uma Bíblia de presente de uma freira e passou a lê-la inteira. Fez isso umas sete ou oito vezes.

Ganhou dezenas de dezenas de outras bíblias, cada uma mais linda do que a outra, mas gostava de uma que estava caindo aos pedaços, que chamo de "tijolão". Morreu com ela na mão.

Tinha uma afeição especial pela história do apóstolo Paulo. Via semelhança em suas vidas. O apóstolo era um matador de cristãos que, ao ouvir a palavra de Deus, tornou-se um defensor fervoroso de Cristo. Bruno se sentia assim.

A mesma perseverança que tinha para fazer justiça com as próprias mãos, teve com a palavra de Deus. Ele construiu duas igrejas nos presídios.

CASO ENCERRADO

Não me fará diferença saber quem o matou. Para mim, é assunto encerrado. Não sei quem foi, mas perdoo essas pessoas. Perdoo porque do mesmo jeito que meu marido alcançou o perdão, essas pessoas podem alcançar também. Eu oro para que elas consigam encontrar o Deus que meu marido alcançou.

Isso não deve ter acontecido ainda, mas eu sei que um dia essas pessoas que o mataram irão se arrepender.

Irão se arrepender quando virem que não mataram o Cabo Bruno dos anos 1980, mas um pastor evangélico. Um homem de Deus.

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