São Paulo, sexta, 1 de janeiro de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA
Euro, um grande projeto político

MAILSON DA NÓBREGA
² A Europa dos 11 -os países que se qualificaram para a moeda única- inicia hoje mais uma etapa de um ambicioso projeto: consolidar um espaço econômico, viabilizar a moeda única, caminhar para uma federação e no final gerar uma identidade comum entre os povos de diferentes línguas e etnias.
Foram muitas as dúvidas sobre a moeda única. Os mais céticos estão entre os economistas dos EUA, como Milton Friedman, talvez porque os defensores da idéia costumem compará-la ao sistema monetário da bem-sucedida federação americana.
Paul Krugman disse da dificuldade de convergir distintos graus de produtividade e lembrou as crises dos mecanismos de alinhamento automático das moedas européias -precursores do euro-, que se iniciaram com a serpente monetária (1971). Irônico, disse que os europeus acreditaram tanto na ilusão que a transformariam em moeda única.
Merton Miller falou dos "choques setoriais assimétricos", que ocorrem em apenas uma região. Nos EUA, os trabalhadores mudam de um lugar para outro. Na Europa, essa facilidade não existiria, muito menos com seu rígido processo trabalhista. Nos EUA, o governo federal redistribui recursos em favor das áreas afetadas. Na Europa, nem há o governo federal, nem os burocratas de Bruxelas têm poder ou legitimidade para tanto.
Martin Feldstein, catastrofista, lamentou que o compromisso dos europeus com o projeto os levasse a implantar a moeda única. Ele identificou nos choques assimétricos e em outros problemas do euro as fontes de tensão que terminarão em guerra.
Outros lembraram o fracasso de experiências anteriores de união monetária. No século 19, naufragaram a União Monetária Latina e a União Monetária Germânica. O padrão-ouro, uma idéia similar, hoje serve apenas para países que precisam atrelar sua moeda a outra, como Argentina e Hong Kong.
Apesar desses alertas, a determinação política dos europeus foi mais forte. O projeto ganhou corpo, consolidou-se. Nos anos 70, iniciou-se a trajetória que desembocou no euro.
Em 1971, criou-se a serpente monetária. Em 1988, aprovou-se o Relatório Delors, prevendo as fases da união monetária. Em 1992, firmou-se o Tratado de Maastricht, base jurídica da nova moeda.
O euro não é apenas o resultado de paciente trabalho de construção institucional. Integra algo mais ousado do que uma união monetária. É na verdade um grandioso projeto de união política, com a Alemanha à frente no papel de força motriz.
O chanceler Helmut Kohl, reconhecido como o grande baluarte da união monetária, certa vez disse que os alemães precisavam dela para controlar a si próprios e nunca mais embarcar em trágicas aventuras expansionistas.
Os alemães, como disse recentemente a revista "The Economist", resolveram trocar sua forte moeda, o marco, pelo futuro euro, para "provar aos nervosos vizinhos seu permanente compromisso com a integração".
Os franceses, como os alemães, exaltam o objetivo político do projeto. Para Giscard D'Estaing e Helmut Schmidt, em artigo no "O Estado de S. Paulo" (26/10/ 97), "quando o euro se tornar um sucesso estável, teremos dado grandes passos rumo ao objetivo político da união dos Estados europeus".
Os italianos surpreenderam. Temia-se que seu complicado sistema partidário dificultasse o ajuste fiscal necessário ao seu enquadramento. O medo de perder status caso não se juntassem aos alemães e franceses criou o ambiente que permitiu ao primeiro-ministro Romano Prodi mobilizar a classe política a aprovar o ajuste.
Na Espanha, em Portugal e na Irlanda o entusiasmo com a nova moeda é geral. Todos ganharam com a adesão à União Européia, principalmente com as transferências para financiar investimentos em infra-estrutura.
O compromisso político de todos os países com a moeda única está refletido no poder explícito que se delegou ao Banco Central Europeu (BCE) para defendê-la.
É a primeira vez que um grupo tão importante de países renuncia à soberania sobre a gestão macroeconômica e a transfere para uma autoridade supranacional. O fato de alguns dos atuais líderes de esquerda defenderem uma contraposição política ao poder do BCE não diminui o valor dessa decisão.
Em matéria especial sobre o euro (11/4/98), a mesma "The Economist", que jamais apoiou a idéia, rotulou a nova moeda de "uma aventura assustadoramente grande". O desafio, assim, é usar o forte componente político do projeto para realizar as reformas que o viabilizem. É esperar para ver, mas parece exagero apostar no fracasso.
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Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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