São Paulo, sexta, 1 de janeiro de 1999

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LUÍS NASSIF
Os marcianos órfãos

Falo sobre a necessidade de disciplinar (não proibir) o fluxo de capitais internacionais. O seguidor de Gramsci escreve, regozijando-se com o fato de eu ter abandonado o ideário "neoliberal". Na economia, interna, defendo a substituição dos controles burocráticos por controles indicativos, nos moldes das novas agências reguladoras. Volto a ser "neoliberal".
Se fosse a favor do livre fluxo de capitais e da completa desregulamentação da economia, seria um "neoliberal". Se fosse ferrenhamente contra ambos, seria da esquerda tradicional. Mas sendo a favor de controles relativos numa ponta e na outra, não tenho onde me abrigar. Sou um marciano órfão.
Em outra coluna, não consigo aderir a essa interpretação mecanicista e divorciada da realidade, de que o déficit externo foi provocado pelo déficit interno, e atribuo à política de juros a principal influência sobre o déficit interno. Aproveito e critico o aumento dos gastos operacionais no governo Itamar.
Deu um nó na cabeça esquematizada do economista que me escreve. Como pode alguém ser contra o aumento do déficit operacional no governo Itamar e, ao mesmo tempo, criticar a política de juros do governo atual? A relação é óbvia: ambas as políticas aumentam o déficit público, logo é coerente ser contra as duas. Na discussão acadêmica, não. O grupo da direita acha que o único componente de déficit público é a Previdência, o grupo da esquerda acha que o único componente são os juros. E não adianta alguém querer considerar os dois componentes simultaneamente, porque aí embaralha o meio de campo, e impede o exercício da ação de grupo.
Um exemplo? O acadêmico da PUC do Rio, que, em artigo recente para "O Estado", afirma que quem é contra a política de juros do governo quer a volta do velho modelo de crédito subsidiado, de cartórios e de indisciplina fiscal. Nem desconto deu: é pau ou pedra.
Há toda uma discussão complexa em curso, sobre a relação entre déficit interno e externo, sobre limites da política monetária e cambial, sobre instrumentos de política industrial, sobre os limites da abertura, sobre maneiras de se romper os impasses atuais. Política monetária restritiva, com juros a 15% ao ano é uma coisa; com juros a 40% ao ano é outra.
Mas a discussão acaba encoberta por esse primarismo, de reduzir os argumentos do lado contrário a estereótipos, caricaturas, para permitir a qualquer um trazer a discussão ao seu nível, sacar de seus bordões, entrar na batalha do papo furado -e ganhar a gratidão do grupo.
A compreensão da realidade é fator fundamental para a superação de crises. Alguém que se disponha a um levantamento minucioso, estatístico, da discussão econômica brasileira -por intermédio do que sai nos jornais- conseguirá reduzir tudo a meia dúzia de idéias inovadoras, de economistas independentes, cercadas por bordões de todos os lados, manobrados pelos membros das torcidas organizadas.
² Ranço acadêmico
O parâmetro para se julgar qualquer teoria é sua capacidade de "explicar" adequadamente a realidade. O que caracteriza a eficácia de outras culturas -como a americana- é o pragmatismo, a análise de situações e a busca de soluções objetivas para problemas propostos.
Nessa discussão secular brasileira, no entanto, a teoria se basta a si mesmo, é um onanismo mental que não reproduz, não frutifica, não melhora a compreensão do mundo. Para não complicar o padrão mental, os conceitos devem vir padronizados, homogeneizados como um engradado de ovos, sem nenhuma matização, sem nenhum senso de proporção, sem nenhuma relação com os fatos.
Uma das características mais atraentes dos verdadeiros intelectuais é a independência de pensamento, a capacidade de pensar individualmente, de ter como único compromisso a interpretação honesta da realidade, não submetendo seu pensamento nem ao agrado dos poderosos, nem aos grilhões de grupos.
Por aqui, a discussão econômica, pelos jornais, como regra, virou instrumento de politiquices da pior espécie, de pessoas que só sabem atuar em grupos, pensar em grupo, agradar o grupo. Se se quer que a economia se converta em instrumento efetivo de transformação nacional, há que se revalorizar os valores básicos da ciência, o mérito das idéias inovadoras, da capacidade de ousar e de ser independente.
Isso vai se conseguir quando esses valores se tornarem hegemônicos, entre economistas e imprensa especializada, e os populistas de todos os matizes passarem a ser malvistos inclusive por seus pares.
Que saudades de Álvaro Zini Júnior, que sem o brilhareco emproado desse povo, buscava permanentemente -e com humildade-, o pensamento inovador e independente.
²


E-mail: lnassif@uol.com.br





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