|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LUÍS NASSIF
Os marcianos órfãos
Falo sobre a necessidade de disciplinar (não proibir) o fluxo de
capitais internacionais. O seguidor de Gramsci escreve, regozijando-se com o fato de eu ter abandonado o ideário "neoliberal". Na
economia, interna, defendo a
substituição dos controles burocráticos por controles indicativos,
nos moldes das novas agências reguladoras. Volto a ser "neoliberal".
Se fosse a favor do livre fluxo de
capitais e da completa desregulamentação da economia, seria um
"neoliberal". Se fosse ferrenhamente contra ambos, seria da esquerda
tradicional. Mas sendo a favor de
controles relativos numa ponta e
na outra, não tenho onde me abrigar. Sou um marciano órfão.
Em outra coluna, não consigo
aderir a essa interpretação mecanicista e divorciada da realidade,
de que o déficit externo foi provocado pelo déficit interno, e atribuo
à política de juros a principal influência sobre o déficit interno.
Aproveito e critico o aumento dos
gastos operacionais no governo
Itamar.
Deu um nó na cabeça esquematizada do economista que me escreve. Como pode alguém ser contra o aumento do déficit operacional no governo Itamar e, ao mesmo tempo, criticar a política de juros do governo atual? A relação é
óbvia: ambas as políticas aumentam o déficit público, logo é coerente ser contra as duas. Na discussão acadêmica, não. O grupo
da direita acha que o único componente de déficit público é a Previdência, o grupo da esquerda
acha que o único componente são
os juros. E não adianta alguém
querer considerar os dois componentes simultaneamente, porque
aí embaralha o meio de campo, e
impede o exercício da ação de grupo.
Um exemplo? O acadêmico da
PUC do Rio, que, em artigo recente
para "O Estado", afirma que quem
é contra a política de juros do governo quer a volta do velho modelo de crédito subsidiado, de cartórios e de indisciplina fiscal. Nem
desconto deu: é pau ou pedra.
Há toda uma discussão complexa em curso, sobre a relação entre
déficit interno e externo, sobre limites da política monetária e cambial, sobre instrumentos de política industrial, sobre os limites da
abertura, sobre maneiras de se
romper os impasses atuais. Política monetária restritiva, com juros
a 15% ao ano é uma coisa; com juros a 40% ao ano é outra.
Mas a discussão acaba encoberta
por esse primarismo, de reduzir os
argumentos do lado contrário a
estereótipos, caricaturas, para permitir a qualquer um trazer a discussão ao seu nível, sacar de seus
bordões, entrar na batalha do papo furado -e ganhar a gratidão
do grupo.
A compreensão da realidade é
fator fundamental para a superação de crises. Alguém que se disponha a um levantamento minucioso, estatístico, da discussão econômica brasileira -por intermédio
do que sai nos jornais- conseguirá reduzir tudo a meia dúzia de
idéias inovadoras, de economistas
independentes, cercadas por bordões de todos os lados, manobrados pelos membros das torcidas organizadas.
²
Ranço acadêmico
O parâmetro para se julgar
qualquer teoria é sua capacidade
de "explicar" adequadamente a
realidade. O que caracteriza a eficácia de outras culturas -como a
americana- é o pragmatismo, a
análise de situações e a busca de
soluções objetivas para problemas
propostos.
Nessa discussão secular brasileira, no entanto, a teoria se basta a
si mesmo, é um onanismo mental
que não reproduz, não frutifica,
não melhora a compreensão do
mundo. Para não complicar o padrão mental, os conceitos devem
vir padronizados, homogeneizados como um engradado de ovos,
sem nenhuma matização, sem nenhum senso de proporção, sem nenhuma relação com os fatos.
Uma das características mais
atraentes dos verdadeiros intelectuais é a independência de pensamento, a capacidade de pensar individualmente, de ter como único
compromisso a interpretação honesta da realidade, não submetendo seu pensamento nem ao agrado
dos poderosos, nem aos grilhões de
grupos.
Por aqui, a discussão econômica,
pelos jornais, como regra, virou
instrumento de politiquices da
pior espécie, de pessoas que só sabem atuar em grupos, pensar em
grupo, agradar o grupo. Se se quer
que a economia se converta em
instrumento efetivo de transformação nacional, há que se revalorizar os valores básicos da ciência,
o mérito das idéias inovadoras, da
capacidade de ousar e de ser independente.
Isso vai se conseguir quando esses valores se tornarem hegemônicos, entre economistas e imprensa
especializada, e os populistas de
todos os matizes passarem a ser
malvistos inclusive por seus pares.
Que saudades de Álvaro Zini Júnior, que sem o brilhareco emproado desse povo, buscava permanentemente -e com humildade-, o pensamento inovador e independente.
²
E-mail: lnassif@uol.com.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|