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ARTIGO
Europa vista desde o euro
RÉGIS DEBRAY
²
A partir de hoje em Paris, Londres, Berlim e outros lugares, as
moedas se convertem em subdivisões de uma moeda única, o euro.
A partir de 1º de janeiro de 2002,
na Europa só haverá em circulação sete bilhetes: de 500, 200,100,
50, 20, 10 e 5 euros. E oito moedas,
para os "cents" (curioso americanismo, já que, em língua românica
ou de origem latina, "cent" significa centena e não cêntimo).
O que se vê em nossas futuras notas, cuja maqueta acaba de ser revelada? No verso, uma janela. No
reverso, uma ponte. Janelas e pórticos simbolizam o espírito de
abertura, e, as pontes, a idéia de
comunicação. Cinco euros: uma
antiga janela, um aqueduto; dez
euros: um pórtico românico, uma
ponte de pedra... 200 euros, uma
porta acristalada, um viaduto.
Nenhum homem, nenhuma silhueta sobre essas passarelas, sobre essas cúpulas suspensas entre o
céu e a terra, como aparições fantasmagóricas (pilares e colunas
descansam no vazio). Nenhum nome próprio, nenhum retrato, nenhum lema. Não há paisagem nem
data nem lugar. Imagens frias, tecnológicas, desérticas. Desenhos de
computador.
O Instituto Monetário Europeu
se vangloria de ter dado "uma representação apropriada" da Europa. Resultado: uma simbologia
sem carne. Monumentos virtuais
para uma Europa virtual. Pictogramas coringas. Sinais fora do
contexto que limitam uma zona
econômica sem ambição histórica
nem valores morais reivindicados.
"Mercadotecnia" e desenho pariram um sistema de identidade visual com o qual ninguém pode
identificar-se afetivamente, tão
frígido como um logotipo de Warhol. É Euroland como "no man's
land, no sight's land, a land of nowhere". Uma ópera sem voz. Um
maquinário abstrato, tedioso como um dia de eleições européias. É
essa terra flutuante, sem pilares no
coração e na memória dos homens, a "Metanação", o grande
povo em formação que nos haviam
anunciado? Euro, Europa ano zero?
"Há duas coisas que configuram
a alma de uma nação", escreveu
Renan no final do século passado.
"Uma reside na posse comum de
um legado de recordações; a outra,
no consentimento presente, o desejo de viver juntos, a vontade de
continuar fazendo valer a herança
que recebemos indivisível." Somos
por acaso europeus sem lembranças ? Sem herança ? Deixemos de
lado as glórias políticas e militares
suscetíveis sempre de humilhar algum amor próprio nacional. Ficariam Erasmo, Newton, Camões,
Shakespeare, Garibaldi, Goethe,
Voltaire, Cervantes... "Aos grandes homens, Europa agradecida"?
São 15 países; amanhã, 21. Vinte e
uma galerias de grandes homens...
Admitamos: a escolha não era fácil, com certeza, mas como pode a
Europa ser o futuro sentido e vivido do europeu se este é privado de
seu passado sem que lhe seja dado
outro, sem reconhecer-se uma legenda exclusiva? Reduzir a herança histórica ao imobiliário e, o patrimônio, a uns vestígios fragmentados de obras anônimas demonstra uma inquietante capacidade
de personificar, para oferecer algo
que ver e imaginar, sem equivalente na gênese de outras federações chamadas a perdurar. A originalidade européia se fez na base
dos divisores maiores. Podemos temer que a procura do menor denominador comum, seja na arte gráfica ou na política, a conduza rapidamente à maior insipidez.
Os signos monetários sempre têm
mais sentido do que acreditamos
os que só prestamos atenção à cifra
gravada nos ângulos. As notas, documentos de identidade coletiva,
são um pouco os lapsos das nações,
suas "brincadeiras", diria Sigmund Freud, nas quais se trai um
inconsciente histórico.
Já dissemos: as nações são "comunidades imaginárias", nas
quais o vínculo entre os indivíduos
não se estabelece tanto por meio
das idéias e, sim, de imagens compartilhadas, mitos, lendas ou personagens. A construção de uma genealogia é fundamental para toda
legitimidade política, como a memória o é para a vontade.
A Europa de Bruxelas é uma
criança sem pai: seus signos de poder carecem de todo aspecto imaginário ou mito mobilizador. O
euro é um deserto de homens. O
contrário de uma personalidade
coletiva. Não há nada que recorde,
incluindo seu início, os Estados
Unidos da América, com o qual alguns queriam comparar "os Estados Unidos da Europa'".
Observem o velho "greenback" (a
nota de dólar). Verão o tio Sam
despido. A moeda única dos Estados Unidos da América , como as
demais moedas do mundo, narra
uma epopéia, um "western" secular, o filme dos Pais Fundadores.
US$ 1, George Washington; US$ 2,
Thomas Jefferson; US$ 5, Abraham
Lincoln; US$ 10, Alexander Hamilton; US$ 20, Andrew Jackson; US$
50, Ulysses Grant. O dólar testemunha que as 13 colônias norte-
americanas ( que tinham a mesma
língua, a mesma fé protestante, a
mesma história ou a mesma ausência de história, a mesma cultura e um inimigo comum, a coroa
britânica) se uniram e permaneceram unidas em torno a rostos, nomes próprios e lugares definidos.
Os Estados Unidos estão soldados como uma unidade soberana
por uma guerra de libertação e impregnados de uma Guerra de Secessão. Se você tem a sorte de ter
em mãos uma nota de US$ 100, verá no verso Benjamin Franklin e
no reverso o Independence Hall da
Pensilvânia, um "lugar para lembrar" sem ambigüidade que se
destaca sobre a paisagem, claramente identificado sob o lema: "In
God we Trust". A Europa não é a
terra do povo eleito, graças a Deus.
Isso significa que só crê e não sonha com nada mais que trocar
mercadorias?
Peguem o bilhete de US$ 1. Washington, em um medalhão, o antigo comandante-em-chefe do exército continental, com a peruca empoeirada, com "chorreras", 64
anos. Observem o selo de perto. A
águia representa a soberania norte-americana. Sua cabeça, o Executivo; seu escudo, o Legislativo e
seu rabo com nove plumas, o Judiciário. Na sua garra direita, uns
ramos de oliva; na esquerda, as flechas da guerra. Tudo isso sob uma
"glória" divina, o Espírito Santo.
Reparem no reverso. O olho de
Deus, bem aberto, coroa uma pirâmide de 13 degraus (as colônias
originárias). O poder secular do
Estado - exército e burocracia - se
situa assim sob a eleição divina.
"Ammis coeptis". Deus protegeu
nossas empresas. Esse retângulo
verde e branco sustenta, definitivamente, uma nação messiânica
(a URSS também o era, mas não
era uma nação), sem dúvida a última do mundo, junto com Israel,
mas ela continua querendo o "governo global". A seu lado o euro se
parece a unidade de conta de uma
multinacional. Uma nota de Monopoly. Útil em um sistema de intercâmbio comercial, com certeza.
Mas não conforma um destino.
Que o euro possa fazer concorrência ao dólar um dia é uma esperança amplamente compartilhada
na Europa. Mas a economia não
logra criar uma potência; e não dá
a impressão de que a riqueza européia possa competir com a potência americana -da qual não é, no
momento, mais que uma prolongação política e militar.
Dito claramente: é o vassalo de
um soberano imperial do qual não
questiona -nem por princípio
nem por fatos- a soberania. Essa
Europa, integrada na Otan, tem
tão pouco orgulho que até renunciou ao famoso "segundo pilar" da
Aliança Atlântica por temor a que
se irrite o primeiro, com mando
em Washington.
Em resumo, a melhor mostra das
carências da "máquina Europa" é
este pedaço de papel que não tem
nenhuma história para contar, nenhuma figura da qual se orgulhar,
nenhum acontecimento fundador,
nenhum grande desígnio, nenhum
batismo de fogo.
Sem herói da independência e
sem independência. É preciso ser
demasiadamente ingênuo para
pensar que, de um supermercado,
possa nascer uma superpotência
sem pagar tributo em algum momento ao lado trágico da história.
"Sem paixão não se consegue nada grande"? A Europa permanece
no terreno do cálculo. Ainda não
tem uma imagem de si mesma.
Quer dizer, não está preparada para enfrentar, como gente grande,
como adulto, os perigos e as tempestades.
²
Régis Debray é filósofo e escritor francês.
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