São Paulo, quinta-feira, 01 de abril de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Ironias da história econômica

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

 A Isaac Deutscher (in memoriam)

"O esperado nunca acontece; é o inesperado sempre", escreveu Keynes certa vez. Foi o que ocorreu no caso do golpe militar, que está completando 40 anos. A derrubada do governo Goulart deu início a um processo que, sob vários aspectos, contrariou frontalmente as expectativas e os planos dos líderes do movimento.
O que se imaginava? Em matéria de economia, supunha-se que a instalação do regime de força levaria à superação da orientação nacional-desenvolvimentista que prevalecera desde a Segunda Guerra Mundial. Com os militares, chegava ao poder a "UDN econômica", de orientação liberal e internacionalista.
Ou pensou que chegava. Depois de um certo tempo, as políticas econômicas dos governos militares tomaram um rumo bastante diferente, em certo sentido oposto ao desejado pelos líderes de 1964. Ironicamente, os militares acabaram retornando, no plano econômico, à tradição nacional-desenvolvimentista dos seus adversários políticos, Vargas e Kubitschek. A "UDN econômica", outra ironia, só chegaria realmente ao poder muitos anos depois do fim da ditadura, já na década de 90, pela mão de governos civis, eleitos pelo voto direto.
Entre a Segunda Guerra Mundial e 1964, a polarização básica se dava entre a aliança PSD-PTB, dois partidos criados por Getúlio Vargas, e a UDN, partido formado na luta contra o Estado Novo getulista. No campo econômico, essa polarização reproduzia-se, grosso modo, nas controvérsias entre estruturalistas e monetaristas, para usar o jargão da época.
Do grupo estruturalista ou desenvolvimentista, faziam parte nomes como Roberto Simonsen e Celso Furtado. No grupo monetarista, estavam Eugênio Gudin, Roberto Campos (depois de uma fase inicial mais estruturalista) e Octávio Gouvêa de Bulhões. Os dois últimos desempenhariam importante papel na condução da política econômica no governo Castello Branco (1964-1967).
Até 1964, o pólo dominante era a linha Vargas-JK. A UDN era, em teoria, um partido politica e economicamente liberal-democrático (a sigla significava União Democrática Nacional). Na prática, a agremiação era essencialmente elitista, conservadora, pró-alinhamento com os Estados Unidos e -ironicamente- golpista. A razão é que os udenistas tinham uma certa dificuldade em vencer eleições presidenciais (a exceção, Jânio Quadros, era uma figura atípica da UDN, um populista carismático de direita, que prefigurou Fernando Collor e, como ele, pouco durou no poder). Sem grande sucesso nas urnas e vocalizando os temores das elites brasileiras em relação aos excessos "populistas" e esquerdistas de parte do campo varguista, a UDN tornou-se essencialmente autoritária e antidemocrática.
Em 1964, esse grupo alcança finalmente o poder pela força, depois de algumas tentativas anteriores frustradas de golpe. Mas a "UDN econômica" prevaleceu apenas na fase inicial do regime militar, durante o governo Castello Branco. Mesmo nesse período, o liberalismo econômico não foi levado a ferro e fogo, tendo sido aplicado com mais cuidado e pragmatismo do que em outros países latino-americanos que experimentaram a combinação de ditaduras militares com experiências radicais, e não raro desastrosas, de liberalização econômica (Argentina e Chile, por exemplo).
A dupla Campos-Bulhões foi sucedida por Delfim Netto, economista mais eclético e mais próximo do estruturalismo. No governo Geisel, intensificou-se a retomada da agenda nacional-desenvolvimentista. O ministro da Fazenda de Geisel, Mario Henrique Simonsen, era discípulo de Gudin e Bulhões, pertencia como eles à Fundação Getúlio Vargas (instituição cujo nome é outra pequena ironia...), mas era teoricamente mais eclético do que Gudin e menos obcecado com o combate à inflação do que Bulhões. No governo Figueiredo, Delfim volta ao comando da economia e fracassa em nova tentativa de acelerar o crescimento num período marcado por violentos choques externos.
No cômputo global, o regime militar ficou economicamente mais próximo dos seus adversários políticos do que da UDN. Os resultados foram, em geral, mais ou menos parecidos: crescimento econômico rápido pontuado por crises inflacionárias, uma certa desordem fiscal, dificuldades recorrentes de balanço de pagamentos e grande endividamento externo.
Quando comecei as minhas atividades profissionais na FGV do Rio de Janeiro, há 25 anos, o meu foco como pesquisador era a análise crítica das políticas de endividamento externo dos governos Geisel e Figueiredo, políticas que terminariam por abortar o desenvolvimento do país e comprometer a autonomia nacional.
Nunca poderia imaginar que o pior estava por vir. A ironia final é que os tumultos financeiros e inflacionários e a longa crise da dívida externa dos anos 80 acabariam levando ao desfecho que se pensava que o golpe de 1964 produziria: a hegemonia da "UDN econômica".
O processo começou, de forma bastante caótica, com o novo Jânio, Fernando Collor. Domesticada a figura destoante de Itamar Franco, consolidou-se a nova (na verdade, velha) orientação sob o comando de Fernando Henrique Cardoso. No seu discurso de despedida do Senado, em 1994, FHC anunciou, sintomaticamente, que a sua meta seria encerrar a era Vargas.
Sob nova etiqueta (PSDB), era a UDN finalmente no poder -e pelo voto! Os personagens eram (ou pareciam) novos. Intelectuais e políticos "globalizados" (no pior sentido da palavra) assumiram o comando. A área econômica foi entregue a economistas liberais, treinados nos Estados Unidos.
Mais uma ironia: essa nova UDN era composta, em grande medida, de ex-socialistas e ex-marxistas.
E nós, brasileiros, descobrimos, estarrecidos, que o pior tipo de liberal é o ex-socialista.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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