|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OPINIÃO ECONÔMICA
Ironias da história econômica
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
A Isaac Deutscher (in memoriam)
"O esperado nunca acontece; é o inesperado sempre", escreveu Keynes certa vez.
Foi o que ocorreu no caso do golpe militar, que está completando
40 anos. A derrubada do governo
Goulart deu início a um processo
que, sob vários aspectos, contrariou frontalmente as expectativas
e os planos dos líderes do movimento.
O que se imaginava? Em matéria de economia, supunha-se que
a instalação do regime de força levaria à superação da orientação
nacional-desenvolvimentista que
prevalecera desde a Segunda
Guerra Mundial. Com os militares, chegava ao poder a "UDN
econômica", de orientação liberal
e internacionalista.
Ou pensou que chegava. Depois
de um certo tempo, as políticas
econômicas dos governos militares tomaram um rumo bastante
diferente, em certo sentido oposto
ao desejado pelos líderes de 1964.
Ironicamente, os militares acabaram retornando, no plano econômico, à tradição nacional-desenvolvimentista dos seus adversários políticos, Vargas e Kubitschek. A "UDN econômica", outra
ironia, só chegaria realmente ao
poder muitos anos depois do fim
da ditadura, já na década de 90,
pela mão de governos civis, eleitos
pelo voto direto.
Entre a Segunda Guerra Mundial e 1964, a polarização básica
se dava entre a aliança PSD-PTB,
dois partidos criados por Getúlio
Vargas, e a UDN, partido formado na luta contra o Estado Novo
getulista. No campo econômico,
essa polarização reproduzia-se,
grosso modo, nas controvérsias
entre estruturalistas e monetaristas, para usar o jargão da época.
Do grupo estruturalista ou desenvolvimentista, faziam parte
nomes como Roberto Simonsen e
Celso Furtado. No grupo monetarista, estavam Eugênio Gudin,
Roberto Campos (depois de uma
fase inicial mais estruturalista) e
Octávio Gouvêa de Bulhões. Os
dois últimos desempenhariam
importante papel na condução da
política econômica no governo
Castello Branco (1964-1967).
Até 1964, o pólo dominante era
a linha Vargas-JK. A UDN era,
em teoria, um partido politica e
economicamente liberal-democrático (a sigla significava União
Democrática Nacional). Na prática, a agremiação era essencialmente elitista, conservadora, pró-alinhamento com os Estados Unidos e -ironicamente- golpista.
A razão é que os udenistas tinham uma certa dificuldade em
vencer eleições presidenciais (a
exceção, Jânio Quadros, era uma
figura atípica da UDN, um populista carismático de direita, que
prefigurou Fernando Collor e, como ele, pouco durou no poder).
Sem grande sucesso nas urnas e
vocalizando os temores das elites
brasileiras em relação aos excessos "populistas" e esquerdistas de
parte do campo varguista, a UDN
tornou-se essencialmente autoritária e antidemocrática.
Em 1964, esse grupo alcança finalmente o poder pela força, depois de algumas tentativas anteriores frustradas de golpe. Mas a
"UDN econômica" prevaleceu
apenas na fase inicial do regime
militar, durante o governo Castello Branco. Mesmo nesse período,
o liberalismo econômico não foi
levado a ferro e fogo, tendo sido
aplicado com mais cuidado e
pragmatismo do que em outros
países latino-americanos que experimentaram a combinação de
ditaduras militares com experiências radicais, e não raro desastrosas, de liberalização econômica (Argentina e Chile, por
exemplo).
A dupla Campos-Bulhões foi
sucedida por Delfim Netto, economista mais eclético e mais próximo do estruturalismo. No governo Geisel, intensificou-se a retomada da agenda nacional-desenvolvimentista. O ministro da Fazenda de Geisel, Mario Henrique
Simonsen, era discípulo de Gudin
e Bulhões, pertencia como eles à
Fundação Getúlio Vargas (instituição cujo nome é outra pequena ironia...), mas era teoricamente mais eclético do que Gudin e
menos obcecado com o combate à
inflação do que Bulhões. No governo Figueiredo, Delfim volta ao
comando da economia e fracassa
em nova tentativa de acelerar o
crescimento num período marcado por violentos choques externos.
No cômputo global, o regime
militar ficou economicamente
mais próximo dos seus adversários políticos do que da UDN. Os
resultados foram, em geral, mais
ou menos parecidos: crescimento
econômico rápido pontuado por
crises inflacionárias, uma certa
desordem fiscal, dificuldades recorrentes de balanço de pagamentos e grande endividamento
externo.
Quando comecei as minhas atividades profissionais na FGV do
Rio de Janeiro, há 25 anos, o meu
foco como pesquisador era a análise crítica das políticas de endividamento externo dos governos
Geisel e Figueiredo, políticas que
terminariam por abortar o desenvolvimento do país e comprometer a autonomia nacional.
Nunca poderia imaginar que o
pior estava por vir. A ironia final
é que os tumultos financeiros e inflacionários e a longa crise da dívida externa dos anos 80 acabariam levando ao desfecho que se
pensava que o golpe de 1964 produziria: a hegemonia da "UDN
econômica".
O processo começou, de forma
bastante caótica, com o novo Jânio, Fernando Collor. Domesticada a figura destoante de Itamar
Franco, consolidou-se a nova (na
verdade, velha) orientação sob o
comando de Fernando Henrique
Cardoso. No seu discurso de despedida do Senado, em 1994, FHC
anunciou, sintomaticamente, que
a sua meta seria encerrar a era
Vargas.
Sob nova etiqueta (PSDB), era a
UDN finalmente no poder -e pelo voto! Os personagens eram (ou
pareciam) novos. Intelectuais e
políticos "globalizados" (no pior
sentido da palavra) assumiram o
comando. A área econômica foi
entregue a economistas liberais,
treinados nos Estados Unidos.
Mais uma ironia: essa nova
UDN era composta, em grande
medida, de ex-socialistas e ex-marxistas.
E nós, brasileiros, descobrimos,
estarrecidos, que o pior tipo de liberal é o ex-socialista.
Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista e professor da FGV-EAESP, escreve
às quintas-feiras nesta coluna. É autor
do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).
E-mail - pnbjr@attglobal.net
Texto Anterior: Esforço fiscal foi maior do que o previsto Próximo Texto: Imposto de renda: Saiba declarar os bens de heranças Índice
|