São Paulo, domingo, 01 de abril de 2007

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RUBENS RICUPERO

Os Ilusionistas


No oceano da mudança climática, o etanol não passa de igarapé. Não é alternativa para pôr fim às queimadas

APÓS ESTRONDOSO sucesso de público em São Paulo, os Ilusionistas reapresentarão o espetáculo do etanol em Camp David neste fim de semana. Diante dos olhos crédulos de jornalistas e espectadores, da cartola de modesto paliativo como o etanol sairá voando a pomba da esperança, panacéia para ocultar e absolver a imensa responsabilidade em causar o aquecimento global dos prestidigitadores.
O ator principal será o poluidor número 1 do planeta: George W. Bush, cujas credenciais são impecáveis. Seu país responde por quase 30% dos gases do efeito estufa, mas ele renegou a assinatura no Protocolo de Kyoto, recusando obstinadamente qualquer medida interna de redução das emissões.
Intimidou e ameaçou cientistas e funcionários, foi aos tribunais para emascular lei pioneira da Califórnia e nomeou como assessor ambiental da Casa Branca um lobbista da indústria de petróleo, que se desonrou no cargo, conforme previsível.
Menos de dois anos antes do fim do mandato, quando sua popularidade mergulha nos abismos de onde nunca merecia ter saído, descobre os miríficos poderes do etanol para mitigar, em mínima proporção, o gigantesco e irreversível dano que provocou.
Seu coadjuvante é Luiz Inácio Lula da Silva, talentoso e promissor mágico latino, cuja mais recente proeza de transformismo foi, da noite para o dia, levar seu país a galgar um dos primeiros postos da corrida do PIB, ao mesmo tempo que o investimento naufragava a funduras de grotões insondáveis.
O repertório de suas mágicas só encontra paralelo na maravilhada inocência de auditório cuja credulidade é de causar inveja aos colegas. Na questão ambiental, sua façanha é justificar o máximo pelo mínimo, isto é, fazer pouco das queimadas e do desmatamento da Amazônia e magnificar a discreta importância atenuadora dos biocombustíveis.
Em razão da não tão lenta mas gradual e segura destruição da Amazônia, o Brasil é hoje o 4º ou 5º responsável pela concentração de dióxido de carbono. Tal como na inexorável ascensão do PIB, não obstante o esforçado empenho do governador de Mato Grosso et caterva, ainda não chegamos ao topo, onde se acocoram os EUA, a China, a Rússia e a Índia. Nossa contribuição global, de uns 4%, é apenas 12% da americana, o que corresponde, mais ou menos, à diferença de proporções entre as duas economias.
Do total da parcela de responsabilidade nacional, três quartos provêm do setor mais retrógrado e predatório: a devastação dos madeireiros, as queimadas para formar pasto, plantar soja etc. Só um quarto decorre de todo o conjunto moderno da economia, no qual se concentra o desenvolvimento: geração energética, produção industrial, transporte por veículos e aviões.
Isso significa duas coisas. Primeiro, que é mentira justificar o desmatamento pela prioridade do desenvolvimento. A contribuição econômica do setor retrógrado é mínima e, a rigor, negativa. Basta levar em conta a perda irrecuperável de biodiversidade de valor ainda ignorado, a inexorável degradação de solos frágeis, o envenenamento de rios e aquíferos, a aceleração do aquecimento com efeitos funestos sobre a própria Amazônia (lembre-se a seca sem precedentes de 2005), ameaçando mesmo a competitividade da agroindústria do Centro-Oeste e do Sudeste.
Segundo, se apenas parte dos 25% da poluição brasileira se origina nos veículos e a ação compensatória do etanol só se manifesta sobre parcela dessa cota já parcial, é mistificação querer apresentá-lo como qualquer coisa a mais do que paliativo, pois o álcool também é poluidor, embora em grau menor. Pior seria se as queimadas se ampliassem para acomodar a expansão da cana, seja de modo direto, como se anuncia no Acre, ou indireto, a fim de substituir a produção de alimentos deslocada pelos canaviais.
Valorizar, na justa medida, o papel do etanol é correto. Não esquecendo, porém, que, no oceano da mudança climática, ele não passa de igarapé. Etanol não é alternativa para pôr fim às queimadas, mas complemento útil que deve reforçar o principal. Todo o resto é ilusionismo, escapismo de quem não quer encarar a verdade e diz: "Me engana que eu gosto".


RUBENS RICUPERO , 69, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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