São Paulo, quarta-feira, 01 de outubro de 2008

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ARTIGO

Decisão do Congresso foi tão compreensível quanto errada

As finanças são uma rede de intermediação que conecta os agentes econômicos uns aos outros; sem ela, economia moderna alguma é capaz de sobreviver

MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

FAZ POUCO menos de 70 anos que a Grande Depressão começou. A julgar pela rejeição do plano do secretário do Tesouro Hank Paulson, parece que o Congresso dos EUA crê que tenha chegado a hora de nova depressão.
Aquela crise econômica talvez tenha sido a pior catástrofe do século 20; entre outras coisas, responde pelos eventos que conduziram à Segunda Guerra, com destaque para a ascensão de Hitler. E nós só podemos imaginar os horrores que uma depressão traria agora. Afirmações como essa talvez pareçam exagero. E espero que os maus presságios não se confirmem. No entanto, um desfecho calamitoso deixou de ser impossível, não porque a depressão seja inevitável, longe disso, mas porque é necessário agir para que ela não aconteça.
Estamos assistindo à desintegração do sistema financeiro.
As finanças são uma rede de intermediação que conecta os agentes econômicos uns aos outros, no espaço e no tempo.
Sem ela, economia moderna alguma pode sobreviver. Mas isso está sob ameaça, agora, dado o colapso da confiança e a fuga para a segurança. Podemos conduzir esse processo de forma mais eficiente. Mas por que o faríamos?
Mesmo antes que o Congresso rejeitasse o plano, o "spread" entre a taxa Libor (taxa de juros interbancária, referência dos mercados) e as taxas oficiais de juros havia superado os 200 pontos básicos. Antes do início da crise, em agosto de 2007, esse "spread" era desprezível. E isso não é tudo: na segunda-feira, o rendimento das notas de curto prazo do Tesouro dos Estados Unidos estava abaixo de 1%; e os "spreads" de crédito para os títulos de maior risco estavam se alargando rapidamente. O índice amplo da Bolsa de Nova York S&P 500 também despencou, em 8,8% na segunda-feira, seu pior dia desde o 19 de outubro de 1987. Nada poderia demonstrar melhor o quanto é absurda a crença de que é possível punir o mercado financeiro sem prejudicar a economia mais ampla. As duas coisas estão conectadas, como deveriam estar.
Se o sistema financeiro deixar de funcionar devidamente e diversas instituições financeiras entrarem em colapso, todo mundo sairá prejudicado, e empresas e domicílios passarão por escassez ainda maior de crédito. O que está acontecendo no momento é uma espiral de queda gerada pelo pânico, na qual instituições financeiras desprovidas de liquidez despejam ativos a qualquer preço, enfraquecendo a si mesmas e a outras empresas, especialmente agora que os balanços contabilizam os ativos por seu valor de mercado. Isso solapa a capacidade de conceder empréstimos e prejudica os preços dos ativos, e ainda mais a economia, o que representa novo abalo para os ativos.
O que temos, portanto, é a "revulsão" -o estágio final de uma bolha, no qual, de acordo com os argumentos do economista Hyman Minsky, os investidores estão tão apavorados que não conseguem mais se forçar a participar do mercado.
Infelizmente, entre os investidores em pânico do mercado atual estão os bancos. Eles desejam evitar até mesmo empréstimos entre si. O passivo bruto do setor financeiro americano disparou de só 21% do PIB em 1980 para 116% em 2007. Parte imensa desses passivos gigantescos representa posições que instituições financeiras detêm em outras instituições. Caso não surja crédito, haverá um colapso. É por isso que o setor de bancos de investimentos desapareceu em apenas algumas semanas.
Diante de um pano de fundo tão negativo, de que maneira devemos interpretar a rejeição da Câmara dos EUA ao plano? Como uma decisão tanto compreensível quanto errada.
É compreensível porque o uso do dinheiro dos contribuintes para adquirir os títulos tóxicos lastreados por hipotecas junto aos tolos cobiçosos que criaram a crise é difícil de tolerar. Também é compreensível e louvável que os republicanos hostis ao "socialismo" não queiram resgatar os ricos nada merecedores dessa ajuda, ao menos não antes de uma eleição. Outro motivo é que o plano não convence. Foi criado para tratar da falta de liquidez, e a crise representa um problema de insolvência, à medida que caem os preços das casas e a economia perde força.
Mas a rejeição é um erro grave porque o desastre resultante prejudicará os fracos e destruirá a legitimidade da economia de mercado. A decisão na verdade servirá para convencer a todos de que os EUA estão optando pela inação. Em um momento de tamanha fragilidade, quando o seguro oferecido pelo governo é realmente indispensável, a pior mensagem possível está sendo transmitida. É lastimável que Paulson não tenha escolhido outro plano. É lastimável, igualmente, que um antigo titã de Wall Street seja o encarregado de resgatá-la. Mas ainda assim rejeitar o plano é um erro. É preciso usá-lo como base para fazer o necessário.
O que acontece agora? O primeiro esforço deve ser encontrar um plano que o Congresso aprove. É perfeitamente possível desenvolver idéias que protejam melhor os contribuintes, insistindo em plena restituição depois que as empresas socorridas recuperarem a saúde.
Segundo, parece provável que instituições financeiras significativas tenham dificuldades para se financiar nos próximos dias, à medida que suas ações caem e devido ao congelamento no crédito interbancário. Os bancos centrais precisam realizar todos os esforços imagináveis e alguns inimagináveis para garantir a liquidez. O Fed pode se ver forçado a resgatar outros bancos. Lamentável, mas necessário.
Terceiro, os europeus precisam reconhecer que estão no mesmo barco. Até mesmo um pequeno corte nas taxas de juros pelo Banco Central Europeu e pelo Banco da Inglaterra poderia ser um sinal útil.
Nada do que está acontecendo é facilmente palatável. O surgimento de mastodontes financeiros ainda maiores e mais complexos -grandes demais para falir- é prenúncio de futuras crises. Mas embora seja preciso medir as implicações de longo prazo da resolução da crise, é necessário resolvê-la.
Franklin Delano Roosevelt tornou famosa a idéia de que "a única coisa que devemos temer é o medo". Quando a confiança despenca, a economia de mercado não é capaz de funcionar.
Agora, é preciso restaurá-la.
O problema não é falta de conhecimento sobre como fazê-lo: sabemos como recapitalizar e reestruturar sistemas financeiros. O problema é falta de vontade política. O governo precisa começar a demonstrar que está no controle. No final de um governo americano fracassado, talvez seja demais esperar por isso. Winston Churchill declarou que "os EUA invariavelmente fazem a coisa certa depois de esgotarem todas as demais alternativas". As alternativas se esgotaram. É hora de os políticos fazerem a coisa certa.

Tradução de PAULO MIGLIACCI



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