São Paulo, Domingo, 02 de Janeiro de 2000


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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Antes que seja tarde demais...

LUCIANO COUTINHO

As avaliações sobre o desempenho da economia brasileira no ano passado foram quase unânimes em destacar a forma bem-sucedida de transição do maligno regime macroeconômico anterior (câmbio sobrevalorizado com juros muito altos) para o atual -com pequeno impacto sobre a taxa de inflação. Não há dúvida de que a atual política abriu uma perspectiva mais saudável para o futuro da economia ao liberar a taxa de câmbio da armadilha. Mas as razões para comemoração devem parar por aí.
Já está claro para todos que os estragos provocados pela forma imprevidente da gestão do Plano Real foram muito profundos. Não existem condições de sustentação do crescimento e há, ainda, que atravessar os riscos de realimentação da inflação.
A evidência inequívoca da situação de vulnerabilidade está na dificuldade de reduzir a taxa de juros. Com efeito, nos últimos cinco anos a conjugação de elevados déficits interno e externo provocou uma avassaladora expansão dos passivos domésticos (dívida pública a juros elevadíssimos) e das obrigações em moeda estrangeira (passivos privados externos sob diversas formas). Os encargos e as remunerações devidas sobre esses passivos exercem, respectivamente, forte pressão sobre as contas públicas e sobre o balanço de pagamentos.
A sustentação do crescimento tornou-se, assim, muito mais difícil. A política econômica fica vulnerável quando as expectativas de mercado se tornam incertas, dificultando a "rolagem" das duas grandes massas de passivos (domésticos e externos), além das necessidades ainda elevadas de financiamento dos déficits público (os juros devidos pesam mais de 7% do PIB ao ano) e em transações correntes com o exterior (déficit na conta de serviços -principalmente juros e lucros remetidos- superior a US$ 28 bilhões/ano).
Na circunstância atual, qualquer aceleração mais forte do crescimento tenderia a deflagrar efeitos perversos sobre a inflação e sobre as contas externas. A contenção da inflação em 1999 só foi possível em razão da importante queda da massa de rendimentos da sociedade (de 5,1% em 1999). Com desemprego elevado e séria precarização das condições de emprego, houve significativa queda dos rendimentos médios reais dos trabalhadores, resultando em dois efeitos antiinflacionários: 1) caíram fortemente os custos de mão-de-obra para as empresas; 2) a demanda por bens de consumo se manteve retraída. Assim, os salários reais mais baixos auxiliaram na absorção das pressões de custo sobre as empresas decorrentes da maxidesvalorização e, de outro lado, o fraco desempenho da demanda contribuiu para disciplinar a formação de preços.
Assim, uma eventual retomada mais firme do emprego e da demanda final de consumo criaria condições para uma recomposição das margens de rentabilidade, atualmente comprimidas em várias cadeias setoriais, sob a forma de repasse aos preços das pressões de custo remanescentes.
Simultaneamente, uma recuperação mais rápida da economia tenderia a comprometer o objetivo oficial de alcançar um superávit comercial próximo a US$ 5 bilhões no ano 2000. Não se trata apenas da capacidade de melhorar substancialmente as vendas externas, cujo bom desempenho dependerá dos preços internacionais das nossas commodities de exportação. Há, de outro lado, a possibilidade de que as importações também cresçam expressivamente, apesar da desvalorização cambial, ante a lentidão do avanço do processo de substituição de importações.
Uma nova frustração das expectativas com relação à balança comercial, assim como uma eventual reaceleração da inflação, criaria sério obstáculo à continuidade do crescimento. A política de juros e câmbio continua, assim, refém das vulnerabilidades.
Depois de duas décadas decepcionantes -em contraste com o avanço da 3ª Revolução Industrial nas economias desenvolvidas-, o Brasil não pode mais permanecer condenado à estagnação, à desnacionalização e à crise social desesperadora. No início de um novo século, a nossa sociedade quer poder voltar a olhar o futuro com esperança. Não tolera mais a pobreza, a violência, a corrupção, o desemprego e o desencanto.
É preciso que o governo FHC entenda isso e crie coragem e vergonha. É necessário recomeçar a construção do Brasil, interrompida pela crise dos anos 80 e desfeita pela política de câmbio sobrevalorizado. É urgente construir fundamentos sólidos para a sustentação autônoma do desenvolvimento. Isso implica obter e manter um superávit comercial de grande escala (superior a 2% do PIB) para que possa gerar divisas próprias e financiar as nossas contas externas - interrompendo-se o absurdo ciclo de alienação de ativos nacionais em serviços públicos e em outros setores "non-tradeables".
A reorganização econômica do país não pode aguardar mais tempo sem que incorramos em custos irreversíveis e riscos incomensuráveis.


Luciano Coutinho, 53, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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