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OPINIÃO ECONÔMICA
A cara humana da moeda
RUBENS RICUPERO
˛
Há alguns meses, quando visitei em Bruxelas o comissário
Sélguy, responsável pela moeda
única, fiquei agradavelmente
surpreso ao ver que ele conhecia
muito bem a experiência que havíamos tido no Brasil, com a introdução do real, na época do
presidente Itamar Franco. Dele
ouvi que a Comissão Européia
considerava precedente valioso
para o euro a campanha que tínhamos realizado, devido a duas
razões básicas: 1) a de que se tratava do mais recente episódio de
lançamento de moeda nova em
país continental com mais de 150
milhões de habitantes (e, portanto, condições comparáveis às européias); 2) pelo êxito da operação, desenrolada sem incidentes,
na mais absoluta tranquilidade
(em contraste com os problemas
da moeda russa).
Da mesma forma, não tenho
dúvida de que o euro se firmará
como unidade forte, valorizada
em relação ao dólar e, no devido
tempo, há de se consolidar como
moeda de reserva alternativa, ao
lado deste. Será bom para o equilíbrio do mundo dispor de algum
pluralismo monetário, como será positivo ter um dia mais multipolarismo político, quando a
Europa conseguir afinal desenvolver a individualidade em diplomacia e defesa que ainda lhe
faz falta.
Esse êxito, contudo, não basta
por si só para garantir que, com
moeda única e forte, os europeus
cheguem mais perto de resolver o
seu mais grave e intratável problema, o desemprego estrutural e
de massa, teimosamente ancorado em torno dos 11%. Há até
quem ache, como o prêmio Nobel
Franco Modigliani, que o euro
pode revelar-se, nesse sentido,
prematuro e prejudicial por privar as autoridades nacionais dos
instrumentos de política monetária e fiscal necessários para estimular a demanda e gerar empregos. Haveria contradição em
continuar a considerar a política
de emprego como responsabilidade do governo de cada país,
mas negar a esses governos instrumentos essenciais dessa política, como a taxa de juros (agora
do domínio do Banco Central
Europeu) ou o recurso ao déficit
orçamentário para estimular a
economia na fase recessiva do ciclo (dificultada pelo acordo de
Maastricht).
Na Europa ou no Brasil, o problema no fundo é o mesmo: como
assegurar moeda estável e forte
e, ao mesmo tempo, conseguir
crescimento rápido da economia
e redução do desemprego. É esse
o dilema dos governos europeus,
dos quais a imensa maioria é formada por sociais- democratas ou
ex-comunistas que aceitaram
subordinar seus objetivos sociais
a uma meta fundamentalmente
política, a unificação européia
simbolizada na moeda, apanágio da soberania. A fim de realizar o que um escritor francês descreveu como "mito criador" -os
Estados Unidos da Europa-, as
reivindicações sociais, as questões ideológicas, a luta contra o
desemprego, contra a desigualdade, foram colocadas em surdina, deixadas para ocasião mais
propícia. Assim como na Primeira Guerra Mundial o nacionalismo francês ou alemão havia sido
mais forte do que a luta de classes e o internacionalismo pacifista de Jaurès, desta vez a construção da Europa passou a ser o critério de respeitabilidade política
a que sucumbiram mesmo os ex-
comunistas.
O problema é que existe nessa
matéria distância apreciável entre os dirigentes adeptos do europeísmo e o conjunto da população, mais interessado em coisas
concretas. Na França, por exemplo, já há 25 anos as pesquisas indicam que, para 75% dos eleitores, o desemprego é a principal
preocupação no momento do voto. Ora, não está claro como a
moeda única contribuirá para
solucionar questão diante da
qual até agora fracassaram invariavelmente todos os governos,
de esquerda e de direita. É provável que, ao reduzir os custos de
transação, o euro estimule o comércio e favoreça o crescimento,
mas não se espera nada espetacular. Como as políticas monetárias e fiscal continuarão comprometidas com as metas restritivas
de Maastricht, o crescimento será, na melhor das hipóteses, de
2% em 1999 e, em casos como o
da Itália, bem menos do que isso.
Essas taxas são manifestamente
incapazes de permitir a redução
substancial do desemprego. Nessas condições, até quando governos teoricamente de esquerda
convencerão seu eleitorado a esperar? Não haveria o risco de repetir a ilusão comunista, que sacrificou gerações a uma promessa utópica cuja realização estava
sempre anunciada para depois
da virada da esquina?
A prova dos nove virá não da
moeda apenas, mas da sua capacidade de criar condições para
crescimento muito mais acelerado do que nas últimas duas décadas. Mas isso depende não só da
estabilidade monetária, mas de
outras políticas, inclusive estruturais, sem as quais a moeda permanecerá estéril. Em 1948, a introdução pelos aliados do novo
marco abriu caminho para o milagre alemão. A moeda, contudo,
foi só um dos ingredientes do milagre, resultado do gigantesco esforço indispensável para satisfazer às necessidades da reconstrução de um país arrasado e uma
população que precisava de tudo. E, a fim de financiar o esforço, não faltaram os generosos recursos do Plano Marshall. Acima
de tudo, o êxito do marco repousou no consenso em torno da
idéia de criar a "economia social
de mercado", a economia da colaboração entre o governo e os
parceiros sociais, da responsabilidade comunitária da empresa.
Os alemães se sentem apegados
ao marco porque a moeda lhes
trouxe décadas de bem-estar e
não apenas por ela ser bem-vista
pelos mercados financeiros.
De igual maneira, o êxito do
dólar de hoje se edificou sobre a
clara opção pró-crescimento do
presidente do Fed, Alan Greenspan, que conseguiu harmonizar
três objetivos que em outros países parecem contraditórios e mutuamente excludentes: baixa inflação, pleno emprego e crescimento acelerado. Atrás de cada
grande moeda, há uma idéia-
força consensual, um projeto nacional autônomo. Para o euro,
será talvez o combate ao desemprego. Para o real, terá de ser a
eliminação da miséria extrema e
a redução dos abismos de desigualdade.
˛
Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da
Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro
da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve
aos sábados nesta coluna.
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