São Paulo, sábado, 2 de janeiro de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA
A cara humana da moeda

RUBENS RICUPERO
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Há alguns meses, quando visitei em Bruxelas o comissário Sélguy, responsável pela moeda única, fiquei agradavelmente surpreso ao ver que ele conhecia muito bem a experiência que havíamos tido no Brasil, com a introdução do real, na época do presidente Itamar Franco. Dele ouvi que a Comissão Européia considerava precedente valioso para o euro a campanha que tínhamos realizado, devido a duas razões básicas: 1) a de que se tratava do mais recente episódio de lançamento de moeda nova em país continental com mais de 150 milhões de habitantes (e, portanto, condições comparáveis às européias); 2) pelo êxito da operação, desenrolada sem incidentes, na mais absoluta tranquilidade (em contraste com os problemas da moeda russa).
Da mesma forma, não tenho dúvida de que o euro se firmará como unidade forte, valorizada em relação ao dólar e, no devido tempo, há de se consolidar como moeda de reserva alternativa, ao lado deste. Será bom para o equilíbrio do mundo dispor de algum pluralismo monetário, como será positivo ter um dia mais multipolarismo político, quando a Europa conseguir afinal desenvolver a individualidade em diplomacia e defesa que ainda lhe faz falta.
Esse êxito, contudo, não basta por si só para garantir que, com moeda única e forte, os europeus cheguem mais perto de resolver o seu mais grave e intratável problema, o desemprego estrutural e de massa, teimosamente ancorado em torno dos 11%. Há até quem ache, como o prêmio Nobel Franco Modigliani, que o euro pode revelar-se, nesse sentido, prematuro e prejudicial por privar as autoridades nacionais dos instrumentos de política monetária e fiscal necessários para estimular a demanda e gerar empregos. Haveria contradição em continuar a considerar a política de emprego como responsabilidade do governo de cada país, mas negar a esses governos instrumentos essenciais dessa política, como a taxa de juros (agora do domínio do Banco Central Europeu) ou o recurso ao déficit orçamentário para estimular a economia na fase recessiva do ciclo (dificultada pelo acordo de Maastricht).
Na Europa ou no Brasil, o problema no fundo é o mesmo: como assegurar moeda estável e forte e, ao mesmo tempo, conseguir crescimento rápido da economia e redução do desemprego. É esse o dilema dos governos europeus, dos quais a imensa maioria é formada por sociais- democratas ou ex-comunistas que aceitaram subordinar seus objetivos sociais a uma meta fundamentalmente política, a unificação européia simbolizada na moeda, apanágio da soberania. A fim de realizar o que um escritor francês descreveu como "mito criador" -os Estados Unidos da Europa-, as reivindicações sociais, as questões ideológicas, a luta contra o desemprego, contra a desigualdade, foram colocadas em surdina, deixadas para ocasião mais propícia. Assim como na Primeira Guerra Mundial o nacionalismo francês ou alemão havia sido mais forte do que a luta de classes e o internacionalismo pacifista de Jaurès, desta vez a construção da Europa passou a ser o critério de respeitabilidade política a que sucumbiram mesmo os ex- comunistas.
O problema é que existe nessa matéria distância apreciável entre os dirigentes adeptos do europeísmo e o conjunto da população, mais interessado em coisas concretas. Na França, por exemplo, já há 25 anos as pesquisas indicam que, para 75% dos eleitores, o desemprego é a principal preocupação no momento do voto. Ora, não está claro como a moeda única contribuirá para solucionar questão diante da qual até agora fracassaram invariavelmente todos os governos, de esquerda e de direita. É provável que, ao reduzir os custos de transação, o euro estimule o comércio e favoreça o crescimento, mas não se espera nada espetacular. Como as políticas monetárias e fiscal continuarão comprometidas com as metas restritivas de Maastricht, o crescimento será, na melhor das hipóteses, de 2% em 1999 e, em casos como o da Itália, bem menos do que isso. Essas taxas são manifestamente incapazes de permitir a redução substancial do desemprego. Nessas condições, até quando governos teoricamente de esquerda convencerão seu eleitorado a esperar? Não haveria o risco de repetir a ilusão comunista, que sacrificou gerações a uma promessa utópica cuja realização estava sempre anunciada para depois da virada da esquina?
A prova dos nove virá não da moeda apenas, mas da sua capacidade de criar condições para crescimento muito mais acelerado do que nas últimas duas décadas. Mas isso depende não só da estabilidade monetária, mas de outras políticas, inclusive estruturais, sem as quais a moeda permanecerá estéril. Em 1948, a introdução pelos aliados do novo marco abriu caminho para o milagre alemão. A moeda, contudo, foi só um dos ingredientes do milagre, resultado do gigantesco esforço indispensável para satisfazer às necessidades da reconstrução de um país arrasado e uma população que precisava de tudo. E, a fim de financiar o esforço, não faltaram os generosos recursos do Plano Marshall. Acima de tudo, o êxito do marco repousou no consenso em torno da idéia de criar a "economia social de mercado", a economia da colaboração entre o governo e os parceiros sociais, da responsabilidade comunitária da empresa. Os alemães se sentem apegados ao marco porque a moeda lhes trouxe décadas de bem-estar e não apenas por ela ser bem-vista pelos mercados financeiros.
De igual maneira, o êxito do dólar de hoje se edificou sobre a clara opção pró-crescimento do presidente do Fed, Alan Greenspan, que conseguiu harmonizar três objetivos que em outros países parecem contraditórios e mutuamente excludentes: baixa inflação, pleno emprego e crescimento acelerado. Atrás de cada grande moeda, há uma idéia- força consensual, um projeto nacional autônomo. Para o euro, será talvez o combate ao desemprego. Para o real, terá de ser a eliminação da miséria extrema e a redução dos abismos de desigualdade.
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Rubens Ricupero, 61, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), escreve aos sábados nesta coluna.



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