São Paulo, segunda-feira, 02 de fevereiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Punks

JOÃO SAYAD

O adolescente inicia a construção da própria identidade afastando-se da família. Passa a conviver quase exclusivamente com amigos da mesma idade, com quem compartilha as mesmas ansiedades, anseios e sonhos. A identificação com o novo grupo é total. A construção da identidade do futuro adulto se apóia no uso de roupas extravagantes e comuns ao grupo e na linguagem diferenciada por gírias e novas expressões indecifráveis pelos "velhos".
Nos casos mais difíceis, por causa de personalidades conflitadas ou ambiente social hostil, o novo grupo se constitui em gangues, comuns em centros urbanos de todo o mundo. Nesses casos, a identificação do adolescente com o grupo se faz por meio de desvios comportamentais que vão desde a pichação dos muros da cidade até o crime violento.
A aparência formal e os hábitos dos adolescentes variam de geração a geração. Na minha juventude, conheci primeiro os existencialistas, taciturnos e introspectivos, depois os beatniks, parecidos com os primeiros, mas de matriz americana, depois a juventude transviada e os playboys, que adotaram em seqüência o rock, o twist e o calipso. Mais recentemente, conhecemos punks, funks e outros tipos que não sei descrever corretamente, a não ser pelo piercing no nariz, na orelha, na língua ou em qualquer outro lugar do corpo.
A adolescência cria problemas sociais que as gerações adultas nunca foram capazes de resolver. As propostas vão desde a liberdade total até a Febem, no caso do nosso Estado. Não há solução satisfatória.
A solução que meus pais adotavam era muito simples -não contrariavam em nada as decisões e os hábitos exóticos dos adolescentes da família, que eram recebidos como coisas naturais. Na infância, sarampo, rubéola, catapora, cachumba. Na adolescência, cabelo comprido, barba, cigarro, bebidas alcóolicas, pegar o carro sem autorização e não aparecer para jantar.
O adolescente podia chegar em casa tatuado, com piercing na língua, roupa de couro preto cheia de tachas e pregos, anunciando que queria ser sacerdote hindu, artista de circo ou poeta. O comentário familiar era lacônico, mas cheio de atenção e respeito, sem demonstrar nenhuma preocupação, que ficava restrita às conversas das noites de insônia dos meus pais.
A pedagogia familiar imaginava que o adolescente queria se "mostrar", "contrariar" para firmar a própria identidade, e que a recepção acomodativa e neutra para todas as excentricidades de indumentária ou comportamentais evitaria maiores conflitos que o tempo acabaria por resolver.
Não era fácil nem barato.
O Banco Central se debate para obter autonomia. Como um adolescente, não sabe que já é autônomo, não por causa da "modernização" que o país pensa estar realizando nos últimos 20 anos. Mas por causa da crise da dívida externa de 82, da globalização financeira e da predominância do setor financeiro sobre os demais setores da economia no Brasil e em todo o mundo capitalista contemporâneo.
Adolescente, o Banco Central resolveu não reduzir as taxas de juros em nem o mísero 0,5 ponto percentual esperado para o mês de janeiro. Contraria, como um adolescente, as informações sobre inflação esperada, inflação observada, risco Brasil, taxa de câmbio e juros internacionais.
Confunde, como um punk fantasiado de banqueiro, de terno preto e ar conservador, autonomia com rebeldia. E dialeticamente atua contra a própria pretensão de autonomia, atiçando o mundo político, empresarial e a opinião pública. Conspira contra o próprio critério de credibilidade que afirma estar construindo.
Depois, desajeitado como os adolescentes, começa a se justificar pelos jornais: excesso de liquidez (mas o programa não é de inflação de metas ou controle de liquidez), inflação maior do que a esperada (preço do aço, do cimento -vai voltar o controle de preços?).
A decisão custou R$ 3,6 bilhões, segundo cálculos apresentados em reportagem do "Valor". Como é aniversário da nossa querida cidade de São Paulo, alguns exemplos tornam concreto o gasto envolvido. A demonstração de autonomia do Banco Central custou ao Tesouro Nacional, em apenas um mês, o equivalente:
a) aos custos de construção de 36 piscinões do tamanho do de Aricanduva (A prefeitura deve construir 12 em quatro anos);
b) a cinco vezes o custo de alargamento, aprofundamento e contenção das margens do Tietê, o maior rio e o maior problema da maior cidade do país, obra a ser executada em três anos pelo governo do Estado;
c) a cinco vezes o custo de construção de corredores de ônibus e finalização da linha do Fura-Fila, que serão executados em quatro anos pela prefeitura;
d) ao orçamento anual das três universidades estaduais -USP, Unicamp e Unesp;
e) ao custo de urbanização de 36 favelas equivalentes à de Paraisópolis;
f) a 12 km de linhas de metrô (o metrô de São Paulo tem 43 km de linhas).
Seguindo a estratégia pedagógica dos meus pais, pensei em fingir que nada tinha acontecido. Afinal de contas, a decisão foi tomada há duas semanas (portanto já gastamos a metade do dinheiro). Mas, no aniversário de São Paulo, não me contive. E, como um adolescente, acabei desobedecendo à recomendação dos meus pais.


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net


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