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OPINIÃO ECONÔMICA
Punks
JOÃO SAYAD
O adolescente inicia a
construção da própria identidade afastando-se da família.
Passa a conviver quase exclusivamente com amigos da mesma
idade, com quem compartilha as
mesmas ansiedades, anseios e sonhos. A identificação com o novo
grupo é total. A construção da
identidade do futuro adulto se
apóia no uso de roupas extravagantes e comuns ao grupo e na
linguagem diferenciada por gírias
e novas expressões indecifráveis
pelos "velhos".
Nos casos mais difíceis, por causa de personalidades conflitadas
ou ambiente social hostil, o novo
grupo se constitui em gangues, comuns em centros urbanos de todo
o mundo. Nesses casos, a identificação do adolescente com o grupo
se faz por meio de desvios comportamentais que vão desde a pichação dos muros da cidade até o
crime violento.
A aparência formal e os hábitos
dos adolescentes variam de geração a geração. Na minha juventude, conheci primeiro os existencialistas, taciturnos e introspectivos, depois os beatniks, parecidos
com os primeiros, mas de matriz
americana, depois a juventude
transviada e os playboys, que
adotaram em seqüência o rock, o
twist e o calipso. Mais recentemente, conhecemos punks, funks
e outros tipos que não sei descrever corretamente, a não ser pelo
piercing no nariz, na orelha, na
língua ou em qualquer outro lugar do corpo.
A adolescência cria problemas
sociais que as gerações adultas
nunca foram capazes de resolver.
As propostas vão desde a liberdade total até a Febem, no caso do
nosso Estado. Não há solução satisfatória.
A solução que meus pais adotavam era muito simples -não
contrariavam em nada as decisões e os hábitos exóticos dos adolescentes da família, que eram recebidos como coisas naturais. Na
infância, sarampo, rubéola, catapora, cachumba. Na adolescência, cabelo comprido, barba, cigarro, bebidas alcóolicas, pegar o
carro sem autorização e não aparecer para jantar.
O adolescente podia chegar em
casa tatuado, com piercing na língua, roupa de couro preto cheia
de tachas e pregos, anunciando
que queria ser sacerdote hindu,
artista de circo ou poeta. O comentário familiar era lacônico,
mas cheio de atenção e respeito,
sem demonstrar nenhuma preocupação, que ficava restrita às
conversas das noites de insônia
dos meus pais.
A pedagogia familiar imaginava que o adolescente queria se
"mostrar", "contrariar" para firmar a própria identidade, e que a
recepção acomodativa e neutra
para todas as excentricidades de
indumentária ou comportamentais evitaria maiores conflitos que
o tempo acabaria por resolver.
Não era fácil nem barato.
O Banco Central se debate para
obter autonomia. Como um adolescente, não sabe que já é autônomo, não por causa da "modernização" que o país pensa estar
realizando nos últimos 20 anos.
Mas por causa da crise da dívida
externa de 82, da globalização financeira e da predominância do
setor financeiro sobre os demais
setores da economia no Brasil e
em todo o mundo capitalista contemporâneo.
Adolescente, o Banco Central
resolveu não reduzir as taxas de
juros em nem o mísero 0,5 ponto
percentual esperado para o mês
de janeiro. Contraria, como um
adolescente, as informações sobre
inflação esperada, inflação observada, risco Brasil, taxa de câmbio
e juros internacionais.
Confunde, como um punk fantasiado de banqueiro, de terno
preto e ar conservador, autonomia com rebeldia. E dialeticamente atua contra a própria pretensão de autonomia, atiçando o
mundo político, empresarial e a
opinião pública. Conspira contra
o próprio critério de credibilidade
que afirma estar construindo.
Depois, desajeitado como os
adolescentes, começa a se justificar pelos jornais: excesso de liquidez (mas o programa não é de inflação de metas ou controle de liquidez), inflação maior do que a
esperada (preço do aço, do cimento -vai voltar o controle de preços?).
A decisão custou R$ 3,6 bilhões,
segundo cálculos apresentados
em reportagem do "Valor". Como
é aniversário da nossa querida cidade de São Paulo, alguns exemplos tornam concreto o gasto envolvido. A demonstração de autonomia do Banco Central custou
ao Tesouro Nacional, em apenas
um mês, o equivalente:
a) aos custos de construção de
36 piscinões do tamanho do de
Aricanduva (A prefeitura deve
construir 12 em quatro anos);
b) a cinco vezes o custo de alargamento, aprofundamento e contenção das margens do Tietê, o
maior rio e o maior problema da
maior cidade do país, obra a ser
executada em três anos pelo governo do Estado;
c) a cinco vezes o custo de construção de corredores de ônibus e
finalização da linha do Fura-Fila,
que serão executados em quatro
anos pela prefeitura;
d) ao orçamento anual das três
universidades estaduais -USP,
Unicamp e Unesp;
e) ao custo de urbanização de
36 favelas equivalentes à de Paraisópolis;
f) a 12 km de linhas de metrô (o
metrô de São Paulo tem 43 km de
linhas).
Seguindo a estratégia pedagógica dos meus pais, pensei em fingir
que nada tinha acontecido. Afinal de contas, a decisão foi tomada há duas semanas (portanto já
gastamos a metade do dinheiro).
Mas, no aniversário de São Paulo,
não me contive. E, como um adolescente, acabei desobedecendo à
recomendação dos meus pais.
João Sayad, 57, economista, é professor
da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a
cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - jsayad@attglobal.net
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