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LUTA SEM FIM
Governos não têm como combater pirataria e tráfico, negócios em expansão, segundo o editor da "Foreign Policy"
Estado é incapaz contra o crime, diz Naím
RAUL JUSTE LORES
DA REPORTAGEM LOCAL
O economista venezuelano
Moisés Naím passou dez anos
pesquisando sobre todos os negócios ilícitos que prosperaram com
a globalização. Do tráfico de drogas à pirataria de produtos de luxo, CDs e DVDs. Chegou à conclusão de que os governos não estão preparados para derrotar as
prósperas indústrias ilegais.
Naím dá exemplos da descentralização da Al Qaeda ou da "sofisticada" indústria que coloca
bolsas falsificadas da marca Prada
nas barracas de camelôs por todo
o mundo para mostrar a competência das novas máfias.
Ele chega a São Paulo amanhã
para lançar o resultado dessa pesquisa, seu livro "Ilícito - O ataque
da pirataria -da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia
global".
Naím é PhD pelo Instituto de
Tecnologia de Massachusetts
(MIT), diretor-executivo do Banco Mundial e ministro da Indústria da Venezuela. É o editor-chefe há nove anos da revista "Foreign Policy", especializada em
relações internacionais.
A seguir, os principais trechos
da entrevista à Folha.
Folha - Por que as redes de negócios ilícitos, as novas máfias, se tornaram tão poderosas?
Moisés Naím - Elas se beneficiaram de todos os avanços da globalização. As comunicações, as movimentações financeiras e os
transportes nunca foram tão fáceis e rápidos. As novas redes de
traficantes não correspondem à
imagem tradicional do que é a
máfia. Não têm a hierarquia do
poderoso chefão, com capitães e
soldados, muito centralizada e
geograficamente estável. As novas
redes têm células pequenas e podem se unir ou se coordenar muito rapidamente pelo mundo.
Folha - As redes de pirataria são
as novas grandes multinacionais?
Naím - Quando você vê uma bolsa Prada, que custa US$ 6.000,
sendo vendida na rua por US$ 50,
você deveria imaginar a operação
que isso implica. Primeiro, alguém roubou o desenho original
em Milão. Ele vai parar na China,
onde outros têm de conseguir as
matérias-primas e até os adornos.
Depois, a manufatura da bolsa. E
a produção idêntica em dezenas
de milhares de cópias.
Folha - Sem falar no transporte
para tantos países...
Naím - Depois os milhares de
produtos são colocados em contêineres e embarcados para diferentes portos do mundo. São desembarcados e levados para as
ruas das principais cidades do
mundo. Nos Estados Unidos e na
Europa, até quem vende essas
bolsas é mão-de-obra "traficada"
-africanos que são vítimas de
outras máfias. É uma epopéia que
até a mais sofisticada multinacional teria dificuldade para manejar
com grande eficiência.
Folha - Só que cada etapa dessa
transação é um crime...
Naím - Para você imaginar a
quantidade de dinheiro envolvido, há um gerenciamento sofisticado, uma operação globalizada,
em vários países. E é impossível
que não aconteça sem a cumplicidade de mais de um governo. Tudo isso responde a instintos humanos muito básicos. O que me
surpreende mais é que a Prada ou
a Louis Vuitton ainda tenham lucros enormes.
Folha - Cada máfia tem seu lucro?
Naím - Não há um chefe com
uma grande estrutura organizacional. Por detrás do processo de
copiar a bolsa e levá-la para a China há muitas células diferentes
que mandam em cada etapa de
produção, determinadas por geografia ou função. Não há um czar,
um poderoso chefão, que controle tudo do princípio ao fim.
Folha - Células autônomas, no
mesmo formato da rede terrorista
Al Qaeda?
Naím - Sim, e veja como ela é tão
difícil de combater. É uma mistura de partido político, organização não-governamental e multinacional. É uma franquia. Não é
uma organização com uma coordenação central. Dez pessoas em
um país qualquer podem se colocar em acordo para criar uma célula da Al Qaeda, sem nunca terem visto o Osama bin Laden. As
idéias são obscurantistas, mas
usam a tecnologia mais avançada.
Folha - A indústria do crime obedece a mesma lógica de globalização descentralizada?
Naím - O contrabando antigamente acontecia entre dois ou três
países, no máximo. Agora, há traficantes de drogas nigerianos na
Tailândia. O cartel do golfo, no
México, trabalha em coordenação
com a máfia russa. Mesmo com a
ocupação americana, o Afeganistão tem 82% do mercado mundial
de heroína. Há Províncias chinesas que estão dominadas por redes de criminosos.
Folha - Como as antigas máfias,
elas estão presentes em vários negócios diferentes?
Naím - Com mercados cada vez
maiores, assim como seus lucros e
seus tentáculos, os traficantes foram se transformando em grandes empresas. Acabaram adotando as regras de qualquer grande
multinacional: diversificação, politização e legitimidade. Primeiro,
diversificaram-se em empresas
que estivessem dentro da lei para
reduzir o seu risco. Depois, gastaram muito dinheiro para obter o
apoio e a proteção de políticos e
funcionários públicos. Por último, fizeram doações e investimentos que pudessem dar um
verniz à sua reputação, desde
meios de comunicação a clubes
esportivos.
Folha - Essas estratégias conseguem passar despercebidas?
Naím - Grupos dedicados a atividades ilegais conseguiram ter vários negócios legais -do traficante marroquino de trabalhadores
marroquinos que se transforma
em milionário imobiliário na Espanha ao traficante de armas russo que vira sócio de uma empresa
petrolífera. A linha entre atividades ilícitas e lícitas fica cada vez
mais difusa. Seus tentáculos e seu
poder de lobby no governo ficam
cada vez maiores. O resultado é a
criminalização do interesse nacional, que ocorre quando algum
governo é influenciado por prioridades e necessidades de atividades ilegais. Há partes da Colômbia, do México, da Rússia e da
China onde isso já é bem visível.
Folha Por que os governos não
conseguiram impedir o avanço de
nenhum desses negócios ilegais?
Naím - Minha conclusão é que os
Estados nacionais estão muito ultrapassados para combater um
negócio tão avançado. Os governos funcionam dentro das fronteiras. Para fora, precisam de embaixadas, consulados, tratados internacionais. Os traficantes se
movimentam muito mais rápido
do que qualquer Justiça nacional
ou internacional. Eles trabalham
em alguns dos negócios mais lucrativos do mundo, têm lucros gigantescos. O tráfico de drogas
movimenta US$ 800 bilhões por
ano -o dobro de 1990. A pirataria movimenta US$ 500 bilhões
-em 1990 ela mal existia. Já os
governos que lutam contra os traficantes têm cada vez menos recursos para combatê-los.
Folha - Sem falar no dinheiro para comprar tecnologia...
Naím - Compare os incentivos
que tem um funcionário público
com alguém que pode ganhar
US$ 10 milhões com um único negócio. É claro que os traficantes
terão a melhor tecnologia, os melhores equipamentos, podem
comprar o que quiserem. São enfrentados por governos que muitas vezes não têm capacidade para
recolher o lixo ou distribuir bem o
correio. O Estado sempre esteve
atrás no avanço tecnológico, em
armas e em segurança.
Folha - Nenhum caso de combate
à pirataria funciona bem?
Naím - Não há um exemplo de
governo que tenha conseguido reduzir esses mercados -do tráfico
de pássaros brasileiros raros a
rins. Os anos 90 foram ótimos para as organizações não-governamentais e para o setor privado. E
terrível para os governos e para os
partidos políticos. Em quase todas as partes, os partidos políticos
perderam militantes e poder. Os
governos se viram limitados essencialmente pela globalização,
pelo controle dos déficits e até pela pressão dos mercados financeiros. Os jovens que querem mudar
o mundo foram para as ONGs.
Folha - O Estado-nação ficou
mais pobre?
Naím - O Estado-nação diminuiu de importância. O 11 de Setembro nos ensinou que há muitos fenômenos que não têm um só
país por trás. Há um ponto de encontro da globalização com a corrupção. De mercados livres com
novas tecnologias que facilitam o
transporte e a comunicação. Isso
gerou uma potência enorme das
redes de delinqüentes -não necessariamente terroristas- e
uma maior fraqueza dos governos. As fronteiras são um enorme
problema para os países. E uma
grande oportunidade de lucro para qualquer traficante, que as usa
como escudo.
Folha - O sr. escreveu que os países precisavam primeiro escolher
que guerras deveriam travar, em
vez de criminalizar tudo. Quais seriam as principais?
Naím - Os governos deveriam
concentrar-se mais na luta contra
o tráfico de crianças, de mulheres
para prostituição, de drogas pesadas, como a heroína, e de material
nuclear. Aí o governo tem de intervir de forma eficiente. Temos
de ser mais seletivos. Nós acabamos pedindo que os governos lutem contra tudo, e que lutem contra a lei da gravidade. Há milhões
de compradores com enorme
vontade de comprar, e milhares
de empresários querendo vender.
Não dá para o governo ficar no
meio, dizendo "por favor, parem
com isso". O mais provável é que
surja corrupção, ineficiência e fracasso.
Folha - Mas os governos não podem simplesmente parar de combater a pirataria de CDs ou DVDs...
Naím - Hoje os governos têm de
combater ao mesmo tempo o tráfico de crianças e as cópias piratas
dos filmes do Harry Potter. É
mentira que estejam conseguindo
algo. Enquanto governos e sociedades não forem mais seletivos
em suas guerras, vão perder. Deve-se escolher quais são os tráficos que mais ameaçam a sociedade. Quando você criminaliza tudo, está contribuindo para um
ambiente subterrâneo, clandestino, ilícito. O que a Lei Seca criou
foi uma enorme expansão do
mercado clandestino de bebidas.
Folha - Para o sr. então a lei estipula crimes demais?
Naím - Cada ano, criminaliza-se
algo novo. Compartilhar música
pela internet não era crime até há
poucos anos. Agora é mais uma
nova coisa que o governo tem de
correr atrás. Aumentar a criminalização é uma resposta clássica e
fracassada ao comércio ilícito.
Folha - Causou comoção no Brasil
a exibição do documentário "Falcão", onde crianças de 12, 13 anos
arriscam sua vida como vendedores de drogas. O senhor não vê solução para combater as drogas, se
há muita demanda?
Naím - O consumo de drogas no
Brasil cresceu muito na última década. Era tradicionalmente lugar
de embarque, de trânsito. Hoje é
um consumidor muito importante. Países que estão ao redor do
Afeganistão, que é grande produtor de ópio, de locais de passagem
passaram a consumidores. Há
populações muito vulneráveis e
poucos negócios ou empregos
que possam competir com o lucro
que as drogas geram.
Folha - Se as drogas fossem legalizadas, preços e lucros poderiam
ser reduzidos?
Naím - Esse problema é global.
Nenhum país pode atuar sozinho.
Se o Brasil legaliza a maconha,
mas não os Estados Unidos, nada
muda: os preços e as margens de
lucro serão definidos pelo maior
consumidor. Não há solução simples. Só garanto que a proibição
no mundo não está funcionando.
Folha - A política americana acaba priorizando o combate aos fornecedores, como os produtores na
Colômbia e na Bolívia...
Naím - Os Estados Unidos gastam US$ 40 bilhões por ano para
controlar a importação e a distribuição de drogas, incluída a maconha. Mas esse gasto todo não
funciona. Há pouquíssimo esforço para mudar os hábitos dos
consumidores. O paradoxo é que
isso acontece no país mais bem-sucedido em lutar contra algo tão
nocivo como o consumo de cigarros. A nicotina vicia muito mais
do que o THC, ingrediente ativo
da maconha. Entretanto os Estados Unidos conseguiram, com
educação e publicidade, que o
consumo de tabaco chegasse ao
menor nível dos últimos 54 anos.
Folha - Por que não se tenta uma
nova política?
Naím - Acontece uma grande hipocrisia. Vários senadores americanos me disseram que não teriam coragem de dizer que "a
guerra contra as drogas não funciona". Ela começou no governo
Nixon. Os senadores acham que
perderiam o mandato no dia seguinte. Os meios de comunicação, as igrejas e os professores têm
de ser mais francos sobre isso para que os políticos mais corajosos
pensem em alternativas.
Folha - Não há saída para Colômbia e Afeganistão, por enquanto?
Naím - A sociedade e os governos têm de se dar conta de que o
problema não é apenas nacional,
apenas moral ou apenas policial.
É global, tem poderosas forças de
lucro operando, e as drogas compram políticos, controlam partes
importantes de vários países. Sem
uma resposta mais global, não vejo como resolver essa questão no
curto prazo.
Folha - A atual política americana, tão unilateral, não enfraquece
qualquer tentativa de cooperação
internacional?
Naím - Com o governo George
W. Bush, o espírito de cooperação
internacional sofreu muito. Não
só para o tráfico ilícito, como para
a proliferação nuclear, para a segurança mundial. Há desconfiança em trabalhar com outros governos. Mas não há inocentes. Veja a Europa. O tráfico de mulheres
da Europa Oriental para a Ocidental é imenso. O consumo de
drogas também. Alguns dos principais produtores de armas do
mundo estão na Europa Ocidental. Não vejo nenhuma resposta a
esses problemas.
Folha - Deputados americanos
querem a construção de um muro
de mil quilômetros na fronteira
com o México, enquanto a Europa
se fecha ainda mais para os imigrantes. São outras respostas erradas dos governos nacionais?
Naím - O muro só vai provocar o
aumento do preço para levar uma
pessoa aos Estados Unidos -de
US$ 6.000 para US$ 7.000. Na Espanha não há uma grade -há um
oceano, e ainda assim é a principal porta dos imigrantes na Europa. Mais uma vez, ataca-se o fornecedor. Nos Estados Unidos,
nunca se puniu tão pouco nos últimos anos a quem emprega os
imigrantes ilegais.
Folha - No Brasil, o jogo é proibido. Mas proliferam loterias, bingos, jogo do bicho e cassinos clandestinos. Proibir não adianta?
Naím - Sempre haverá jogo. É
um fenômeno mundial. Há formas disfarçadas de cassinos. Sempre se começa com os bingos. É
uma questão de "brand" (marca).
Quando falo em cassino, você já
pensa em máfia. Quando se fala
de bingo, você pensa em duas velhinhas jogando. Que um é saudável e o outro é criminoso. No fundo, há redes que operam a indústria do jogo, não todas, mas muitas delas estão vinculadas a operações ilegais. O jogo serve -e muito- para a lavagem de dinheiro.
Folha - Como a repressão a camelôs que vendem produtos pirateados nas cidades brasileiras...
Naím - Eles são a ponta do iceberg de um fenômeno mundial. A
simples repressão policial não resolve o problema. É um problema
global, que atinge vários países, e
que está em fase de expansão.
Cerca de 8% do PIB chinês está
associado a produtos falsificados.
Muito do debate que envolve temas como conseguir a prosperidade da África e a proteção da
propriedade intelectual não pode
ser explicado se você não incorpora o tema dos ilícitos.
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