São Paulo, domingo, 02 de abril de 2006

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LUTA SEM FIM

Governos não têm como combater pirataria e tráfico, negócios em expansão, segundo o editor da "Foreign Policy"

Estado é incapaz contra o crime, diz Naím

RAUL JUSTE LORES
DA REPORTAGEM LOCAL

O economista venezuelano Moisés Naím passou dez anos pesquisando sobre todos os negócios ilícitos que prosperaram com a globalização. Do tráfico de drogas à pirataria de produtos de luxo, CDs e DVDs. Chegou à conclusão de que os governos não estão preparados para derrotar as prósperas indústrias ilegais.
Naím dá exemplos da descentralização da Al Qaeda ou da "sofisticada" indústria que coloca bolsas falsificadas da marca Prada nas barracas de camelôs por todo o mundo para mostrar a competência das novas máfias.
Ele chega a São Paulo amanhã para lançar o resultado dessa pesquisa, seu livro "Ilícito - O ataque da pirataria -da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global".
Naím é PhD pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), diretor-executivo do Banco Mundial e ministro da Indústria da Venezuela. É o editor-chefe há nove anos da revista "Foreign Policy", especializada em relações internacionais.
A seguir, os principais trechos da entrevista à Folha.

Folha - Por que as redes de negócios ilícitos, as novas máfias, se tornaram tão poderosas?
Moisés Naím -
Elas se beneficiaram de todos os avanços da globalização. As comunicações, as movimentações financeiras e os transportes nunca foram tão fáceis e rápidos. As novas redes de traficantes não correspondem à imagem tradicional do que é a máfia. Não têm a hierarquia do poderoso chefão, com capitães e soldados, muito centralizada e geograficamente estável. As novas redes têm células pequenas e podem se unir ou se coordenar muito rapidamente pelo mundo.

Folha - As redes de pirataria são as novas grandes multinacionais?
Naím -
Quando você vê uma bolsa Prada, que custa US$ 6.000, sendo vendida na rua por US$ 50, você deveria imaginar a operação que isso implica. Primeiro, alguém roubou o desenho original em Milão. Ele vai parar na China, onde outros têm de conseguir as matérias-primas e até os adornos. Depois, a manufatura da bolsa. E a produção idêntica em dezenas de milhares de cópias.

Folha - Sem falar no transporte para tantos países...
Naím -
Depois os milhares de produtos são colocados em contêineres e embarcados para diferentes portos do mundo. São desembarcados e levados para as ruas das principais cidades do mundo. Nos Estados Unidos e na Europa, até quem vende essas bolsas é mão-de-obra "traficada" -africanos que são vítimas de outras máfias. É uma epopéia que até a mais sofisticada multinacional teria dificuldade para manejar com grande eficiência.

Folha - Só que cada etapa dessa transação é um crime...
Naím -
Para você imaginar a quantidade de dinheiro envolvido, há um gerenciamento sofisticado, uma operação globalizada, em vários países. E é impossível que não aconteça sem a cumplicidade de mais de um governo. Tudo isso responde a instintos humanos muito básicos. O que me surpreende mais é que a Prada ou a Louis Vuitton ainda tenham lucros enormes.

Folha - Cada máfia tem seu lucro?
Naím -
Não há um chefe com uma grande estrutura organizacional. Por detrás do processo de copiar a bolsa e levá-la para a China há muitas células diferentes que mandam em cada etapa de produção, determinadas por geografia ou função. Não há um czar, um poderoso chefão, que controle tudo do princípio ao fim.

Folha - Células autônomas, no mesmo formato da rede terrorista Al Qaeda?
Naím -
Sim, e veja como ela é tão difícil de combater. É uma mistura de partido político, organização não-governamental e multinacional. É uma franquia. Não é uma organização com uma coordenação central. Dez pessoas em um país qualquer podem se colocar em acordo para criar uma célula da Al Qaeda, sem nunca terem visto o Osama bin Laden. As idéias são obscurantistas, mas usam a tecnologia mais avançada.

Folha - A indústria do crime obedece a mesma lógica de globalização descentralizada?
Naím -
O contrabando antigamente acontecia entre dois ou três países, no máximo. Agora, há traficantes de drogas nigerianos na Tailândia. O cartel do golfo, no México, trabalha em coordenação com a máfia russa. Mesmo com a ocupação americana, o Afeganistão tem 82% do mercado mundial de heroína. Há Províncias chinesas que estão dominadas por redes de criminosos.

Folha - Como as antigas máfias, elas estão presentes em vários negócios diferentes?
Naím -
Com mercados cada vez maiores, assim como seus lucros e seus tentáculos, os traficantes foram se transformando em grandes empresas. Acabaram adotando as regras de qualquer grande multinacional: diversificação, politização e legitimidade. Primeiro, diversificaram-se em empresas que estivessem dentro da lei para reduzir o seu risco. Depois, gastaram muito dinheiro para obter o apoio e a proteção de políticos e funcionários públicos. Por último, fizeram doações e investimentos que pudessem dar um verniz à sua reputação, desde meios de comunicação a clubes esportivos.

Folha - Essas estratégias conseguem passar despercebidas?
Naím -
Grupos dedicados a atividades ilegais conseguiram ter vários negócios legais -do traficante marroquino de trabalhadores marroquinos que se transforma em milionário imobiliário na Espanha ao traficante de armas russo que vira sócio de uma empresa petrolífera. A linha entre atividades ilícitas e lícitas fica cada vez mais difusa. Seus tentáculos e seu poder de lobby no governo ficam cada vez maiores. O resultado é a criminalização do interesse nacional, que ocorre quando algum governo é influenciado por prioridades e necessidades de atividades ilegais. Há partes da Colômbia, do México, da Rússia e da China onde isso já é bem visível.

Folha Por que os governos não conseguiram impedir o avanço de nenhum desses negócios ilegais?
Naím -
Minha conclusão é que os Estados nacionais estão muito ultrapassados para combater um negócio tão avançado. Os governos funcionam dentro das fronteiras. Para fora, precisam de embaixadas, consulados, tratados internacionais. Os traficantes se movimentam muito mais rápido do que qualquer Justiça nacional ou internacional. Eles trabalham em alguns dos negócios mais lucrativos do mundo, têm lucros gigantescos. O tráfico de drogas movimenta US$ 800 bilhões por ano -o dobro de 1990. A pirataria movimenta US$ 500 bilhões -em 1990 ela mal existia. Já os governos que lutam contra os traficantes têm cada vez menos recursos para combatê-los.

Folha - Sem falar no dinheiro para comprar tecnologia...
Naím -
Compare os incentivos que tem um funcionário público com alguém que pode ganhar US$ 10 milhões com um único negócio. É claro que os traficantes terão a melhor tecnologia, os melhores equipamentos, podem comprar o que quiserem. São enfrentados por governos que muitas vezes não têm capacidade para recolher o lixo ou distribuir bem o correio. O Estado sempre esteve atrás no avanço tecnológico, em armas e em segurança.

Folha - Nenhum caso de combate à pirataria funciona bem?
Naím -
Não há um exemplo de governo que tenha conseguido reduzir esses mercados -do tráfico de pássaros brasileiros raros a rins. Os anos 90 foram ótimos para as organizações não-governamentais e para o setor privado. E terrível para os governos e para os partidos políticos. Em quase todas as partes, os partidos políticos perderam militantes e poder. Os governos se viram limitados essencialmente pela globalização, pelo controle dos déficits e até pela pressão dos mercados financeiros. Os jovens que querem mudar o mundo foram para as ONGs.

Folha - O Estado-nação ficou mais pobre?
Naím -
O Estado-nação diminuiu de importância. O 11 de Setembro nos ensinou que há muitos fenômenos que não têm um só país por trás. Há um ponto de encontro da globalização com a corrupção. De mercados livres com novas tecnologias que facilitam o transporte e a comunicação. Isso gerou uma potência enorme das redes de delinqüentes -não necessariamente terroristas- e uma maior fraqueza dos governos. As fronteiras são um enorme problema para os países. E uma grande oportunidade de lucro para qualquer traficante, que as usa como escudo.

Folha - O sr. escreveu que os países precisavam primeiro escolher que guerras deveriam travar, em vez de criminalizar tudo. Quais seriam as principais?
Naím -
Os governos deveriam concentrar-se mais na luta contra o tráfico de crianças, de mulheres para prostituição, de drogas pesadas, como a heroína, e de material nuclear. Aí o governo tem de intervir de forma eficiente. Temos de ser mais seletivos. Nós acabamos pedindo que os governos lutem contra tudo, e que lutem contra a lei da gravidade. Há milhões de compradores com enorme vontade de comprar, e milhares de empresários querendo vender. Não dá para o governo ficar no meio, dizendo "por favor, parem com isso". O mais provável é que surja corrupção, ineficiência e fracasso.

Folha - Mas os governos não podem simplesmente parar de combater a pirataria de CDs ou DVDs...
Naím -
Hoje os governos têm de combater ao mesmo tempo o tráfico de crianças e as cópias piratas dos filmes do Harry Potter. É mentira que estejam conseguindo algo. Enquanto governos e sociedades não forem mais seletivos em suas guerras, vão perder. Deve-se escolher quais são os tráficos que mais ameaçam a sociedade. Quando você criminaliza tudo, está contribuindo para um ambiente subterrâneo, clandestino, ilícito. O que a Lei Seca criou foi uma enorme expansão do mercado clandestino de bebidas.

Folha - Para o sr. então a lei estipula crimes demais?
Naím -
Cada ano, criminaliza-se algo novo. Compartilhar música pela internet não era crime até há poucos anos. Agora é mais uma nova coisa que o governo tem de correr atrás. Aumentar a criminalização é uma resposta clássica e fracassada ao comércio ilícito.

Folha - Causou comoção no Brasil a exibição do documentário "Falcão", onde crianças de 12, 13 anos arriscam sua vida como vendedores de drogas. O senhor não vê solução para combater as drogas, se há muita demanda?
Naím -
O consumo de drogas no Brasil cresceu muito na última década. Era tradicionalmente lugar de embarque, de trânsito. Hoje é um consumidor muito importante. Países que estão ao redor do Afeganistão, que é grande produtor de ópio, de locais de passagem passaram a consumidores. Há populações muito vulneráveis e poucos negócios ou empregos que possam competir com o lucro que as drogas geram.

Folha - Se as drogas fossem legalizadas, preços e lucros poderiam ser reduzidos?
Naím -
Esse problema é global. Nenhum país pode atuar sozinho. Se o Brasil legaliza a maconha, mas não os Estados Unidos, nada muda: os preços e as margens de lucro serão definidos pelo maior consumidor. Não há solução simples. Só garanto que a proibição no mundo não está funcionando.

Folha - A política americana acaba priorizando o combate aos fornecedores, como os produtores na Colômbia e na Bolívia...
Naím -
Os Estados Unidos gastam US$ 40 bilhões por ano para controlar a importação e a distribuição de drogas, incluída a maconha. Mas esse gasto todo não funciona. Há pouquíssimo esforço para mudar os hábitos dos consumidores. O paradoxo é que isso acontece no país mais bem-sucedido em lutar contra algo tão nocivo como o consumo de cigarros. A nicotina vicia muito mais do que o THC, ingrediente ativo da maconha. Entretanto os Estados Unidos conseguiram, com educação e publicidade, que o consumo de tabaco chegasse ao menor nível dos últimos 54 anos.

Folha - Por que não se tenta uma nova política?
Naím -
Acontece uma grande hipocrisia. Vários senadores americanos me disseram que não teriam coragem de dizer que "a guerra contra as drogas não funciona". Ela começou no governo Nixon. Os senadores acham que perderiam o mandato no dia seguinte. Os meios de comunicação, as igrejas e os professores têm de ser mais francos sobre isso para que os políticos mais corajosos pensem em alternativas.

Folha - Não há saída para Colômbia e Afeganistão, por enquanto?
Naím -
A sociedade e os governos têm de se dar conta de que o problema não é apenas nacional, apenas moral ou apenas policial. É global, tem poderosas forças de lucro operando, e as drogas compram políticos, controlam partes importantes de vários países. Sem uma resposta mais global, não vejo como resolver essa questão no curto prazo.

Folha - A atual política americana, tão unilateral, não enfraquece qualquer tentativa de cooperação internacional?
Naím -
Com o governo George W. Bush, o espírito de cooperação internacional sofreu muito. Não só para o tráfico ilícito, como para a proliferação nuclear, para a segurança mundial. Há desconfiança em trabalhar com outros governos. Mas não há inocentes. Veja a Europa. O tráfico de mulheres da Europa Oriental para a Ocidental é imenso. O consumo de drogas também. Alguns dos principais produtores de armas do mundo estão na Europa Ocidental. Não vejo nenhuma resposta a esses problemas.

Folha - Deputados americanos querem a construção de um muro de mil quilômetros na fronteira com o México, enquanto a Europa se fecha ainda mais para os imigrantes. São outras respostas erradas dos governos nacionais?
Naím -
O muro só vai provocar o aumento do preço para levar uma pessoa aos Estados Unidos -de US$ 6.000 para US$ 7.000. Na Espanha não há uma grade -há um oceano, e ainda assim é a principal porta dos imigrantes na Europa. Mais uma vez, ataca-se o fornecedor. Nos Estados Unidos, nunca se puniu tão pouco nos últimos anos a quem emprega os imigrantes ilegais.

Folha - No Brasil, o jogo é proibido. Mas proliferam loterias, bingos, jogo do bicho e cassinos clandestinos. Proibir não adianta?
Naím -
Sempre haverá jogo. É um fenômeno mundial. Há formas disfarçadas de cassinos. Sempre se começa com os bingos. É uma questão de "brand" (marca). Quando falo em cassino, você já pensa em máfia. Quando se fala de bingo, você pensa em duas velhinhas jogando. Que um é saudável e o outro é criminoso. No fundo, há redes que operam a indústria do jogo, não todas, mas muitas delas estão vinculadas a operações ilegais. O jogo serve -e muito- para a lavagem de dinheiro.

Folha - Como a repressão a camelôs que vendem produtos pirateados nas cidades brasileiras...
Naím -
Eles são a ponta do iceberg de um fenômeno mundial. A simples repressão policial não resolve o problema. É um problema global, que atinge vários países, e que está em fase de expansão. Cerca de 8% do PIB chinês está associado a produtos falsificados. Muito do debate que envolve temas como conseguir a prosperidade da África e a proteção da propriedade intelectual não pode ser explicado se você não incorpora o tema dos ilícitos.


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