São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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NA AVENIDA

Notas para o movimento operário

FERNANDO BONASSI
COLUNISTA DA FOLHA

Ontem, a avenida que nasceu para as mansões dos fazendeiros e dos capitães de indústria de São Paulo, que foi comprada pelo sistema financeiro nestes milagres econômicos insuspeitos, pelas redes de lanchonetes multinacionais e pelos sindicatos patronais, acabou tomada por cidadãos vermelhos.
Não se tratava de algo perigoso às instituições seculares, pois esses tempos combativos parecem ultrapassados, quando, no reino, é rei um operário. As cores que usavam era mais um presente carinhoso do que um uniforme escandaloso, visto que a central sindical responsável pelo ato cuidou muito bem dos seus descamisados, dando-lhes camisetas estampadas.
Não era um levante, bem entendido, mas uma data solene e importante, que merecia comemoração ritual. Afinal, no passado remoto do século retrasado, neste dia que acabou sagrado, os grevistas de Chicago foram mortos enquanto reivindicavam menor jornada de trabalho. A solenidade desta data, embora constantemente lembrada, foi logo deixada de lado, pois a batucada que tocava convidava mais à dança que ao luto ou ao protesto.
Quanto à ideologia dos representantes da peãozada, a confusão organizada sempre existiu entre a massa politizada, de modo que cada tendência panfletária aproveitava o silêncio dos oradores de um lado, para gritar suas palavras de ordem contra os outros iguais, que disputavam as honrarias de serem a "classe revolucionária".
À propósito destas falas e de outras falações, o roteiro do programa lembrava aqueles de auditório, onde as etapas discursivas são temperadas por presenças festivas. Assim, os conteúdos políticos dessas lutas se misturavam ao refrões de muitas músicas. Dentre os artistas agitadores, um ministro de Estado, tendo abandonado o terno engomado, tomou o microfone para gritar por Bahia, por Lisboa e por Havana, numa mistura típica de nosso socialismo caboclo. Por essas e outras que as empresas mais privadas deste mundo de capitalismo estivessem maculando a pureza do palanque com seus reclamos burgueses, não parecia afetar aos fregueses, que agradeciam a generosidade alheia, viesse de onde viesse.
Haviam mesmo esquecido divisões antigas, pois se os próprios sindicalistas citavam policiais militares quanto à quantidade de gente que formava as hordas populares!
"Ao meio dia é meio milhão" concordavam os especialistas em multidão (à esquerda e à direita). Não se via muita diferença entre autoridades e atores, entre empresários e cantores...
Para o povo desfiliado daquele sindicato que fitava à distância, restava se dobrar no parapeito dos alambrados reforçados que cercavam o latifúndio do palco, jogando copos de cerveja, refrigerante ou algo mais barato nos seguranças contratados.
Quanto à insegurança, a maior era a do desemprego, apregoado pelos vendedores de suco enlatado em pomares estranhos ou estrangeiros.
Como as canções podiam se tornar românticas, também pode ser que algumas meninas bonitas e inocentes tenham sido manipuladas com mais ou menos leninismo nas coxias, mas ninguém reclamou na delegacia por força de intimidades repartidas entre tapas, cotoveladas, abraços e beijos que não se desejassem.
O novo salário mínimo, pelo menos, foi vaiado. Depois riram dele -um pouco, como se fosse uma piada sem graça.
Mesmo sendo sábado, muitos pensavam na segunda-feira, dia de batente. Isso, bem entendido, pra quem ainda tem onde bater -sem apanhar no fim do mês, é claro.


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