São Paulo, domingo, 2 de maio de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA
Passou do ponto

RUBENS RICUPERO

O sentimento de alívio que caracterizou a reunião do FMI da semana passada sugere que se perdeu uma oportunidade rara de reformar o sistema financeiro internacional. Em outubro passado, o pânico era a nota dominante: colapso da Rússia, susto da quebra do Long Term Capital Management, discurso de Greenspan sobre o desaparecimento da liquidez. Pela primeira vez a economia americana começava a se sentir diretamente ameaçada. Parecia que a crise estava quase no ponto, aquele instante fugaz em que a calda do doce não é rala nem grossa demais, o ponto ótimo para catalisar a ação.
Tudo indica agora que a reativação trazida pelas reduções de juros nos EUA e na Europa, a contenção da crise no Brasil e a tímida reação ensaiada na Ásia se combinaram para dissipar o pouco entusiasmo que principiava a se esboçar para fazer algo de sério. Estamos de volta ao "business as usual", à exuberância irracional da Bolsa, ao alegre retorno do Brasil e de outros latinos à ciranda do endividamento.
Mas será verdade que "a crise acabou", como declarou Camdessus? Depende obviamente do que se entende por "crise". A expressão procede, como se sabe, do jargão médico. Significa o momento da mudança decisiva em que ou a doença se agrava até o desenlace fatal ou começa a gradual recuperação a caminho da convalescença e da cura.
Nesse sentido, comparado a sete meses atrás, quando se temia que a própria economia americana podia mergulhar em recessão, desencadeando o estouro de Wall Street e depressão mundial como em 1929, o instante atual é de justificado desafogo. O que o diretor do FMI quer dizer é exatamente isso: o perigo pior, quem sabe, passou, e não se vê muita possibilidade de que o contágio da doença continue a se propagar a novas vítimas. Mesmo porque não sobraram, além da Europa e dos EUA, muitas outras regiões ainda por devastar, a não ser talvez China e Índia, preservadas do contágio, como a contragosto reconheceu o Fundo, graças aos controles de capitais e à prudente recusa em aceitar a liberalização financeira. É um pouco como a gripe espanhola: chega uma hora em que quem não morreu acaba por curar ou não pegou o vírus por estar imunizado.
Para continuar com a imagem médica, convém lembrar que é falso reduzir a apenas duas as alternativas da doença: a morte ou a cura. Há uma terceira, melhor que a primeira, mas bem inferior à última: a enfermidade se transformar de aguda em crônica, sem perspectiva de desenlace ou de saúde. É, por exemplo, a triste condição dos que são obrigados a viver o resto da vida à custa de pesados coquetéis de medicamentos ou entrando e saindo da UTI.
Receio muito ser esse o cenário mais provável que nos espera. Cura de verdade, com efeito, seria a situação em que a economia e o comércio mundiais voltassem a crescer a taxas aceleradas, os preços das matérias-primas (e não só o petróleo) se recuperassem acentuadamente e as nações em desenvolvimento se expandissem a velocidade muito superior à das economias avançadas, reduzindo assim o fosso da desigualdade entre elas. Ora, não há nenhum indício de que isso venha a ocorrer. Nem é possível prever se os asiáticos conseguirão algum dia recuperar o desempenho fantástico que ostentavam antes da crise. Afinal, a América Latina até hoje mal logrou alcançar a metade da taxa de crescimento de que gozava entre 1945 e 1980 (5,5%) e continua com índices de pobreza (39%) e indigência (17%) significativamente acima dos que apresentava há 20 anos, antes da crise dos anos 80.
O pior, entretanto, é que as medidas cosméticas que tomaram o lugar de uma reforma para valer apenas permitem ganhar tempo até a próxima crise. É o que dizia no editorial de segunda-feira o insuspeito "Financial Times": "Manias, pânicos e colapsos constituem a natureza da besta do mercado financeiro. Em algum ponto, haverá outra crise. A questão é saber se alguma coisa se aprendeu desta". E prosseguia: "Mas a mensagem da reunião de hoje do G-7 será que, quando a próxima crise se desencadear, os países pobres só poderão contar consigo próprios". E, para quem gosta de auto-engano, esta verdade dura e crua: "Os países ricos não vão fazer coisa nenhuma a respeito de seus bancos. Trata-se de instituições poderosas demais. Os interesses são demasiadamente enraizados".
Por conseguinte, os mercados emergentes têm de tomar suas próprias precauções e "não deve haver distorções perversas que encorajem perigosos fluxos de capital em curto prazo, em lugar do mais desejável: empréstimos de longo prazo (...) e investimento direto".
Numa advertência brutal, assevera o jornal: "Se o Ocidente não vai fazer nada para tornar seus bancos mais seguros, os países em desenvolvimento devem limitar sua exposição doméstica, mediante a aplicação de controles a vulnerabilidades de curto prazo em moeda estrangeira. A alternativa é vender o setor bancário aos estrangeiros".
As poucas notícias que me chegam do Brasil, além dos escândalos do Banco Central, dão a impressão de que essa preocupação sensata, que vai do secretário do Tesouro americano ao "Financial Times", é olimpicamente subestimada entre nós. Como se o problema fosse apenas voltar ou não ao mercado. Aparentemente já esquecemos que a verdadeira questão não é poder levantar novos empréstimos para pagar os juros dos antigos, mas indagar se estamos sendo capazes de gerar exportações e excedentes comerciais que nos permitam no futuro fazer frente ao serviço dos empréstimos e manter o déficit corrente em nível moderado, financiável por investimentos diretos.
Com as exportações latino-americanas declinando em 12% no ano passado e as brasileiras despencando em 15% nos primeiros três meses deste, só os temerários de plantão se atreveriam a ignorar o conselho que Fernando Pessoa dirigia a Portugal no fim de sua "Mensagem" e que bem se aplica ao Brasil, sucessor e herdeiro do Quinto Império: "Nem rei nem lei, nem paz nem guerra, (...) Brilho sem luz e sem arder. / Como o que o fogo-fátuo encerra. (...) Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro ... É á hora!".


Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve aos domingos nesta coluna.



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