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OPINIÃO ECONÔMICA
Passou do ponto
RUBENS RICUPERO
O sentimento de alívio que caracterizou a reunião do FMI da
semana passada sugere que se
perdeu uma oportunidade rara
de reformar o sistema financeiro
internacional. Em outubro passado, o pânico era a nota dominante: colapso da Rússia, susto da
quebra do Long Term Capital
Management, discurso de Greenspan sobre o desaparecimento da
liquidez. Pela primeira vez a economia americana começava a se
sentir diretamente ameaçada.
Parecia que a crise estava quase
no ponto, aquele instante fugaz
em que a calda do doce não é rala
nem grossa demais, o ponto ótimo
para catalisar a ação.
Tudo indica agora que a reativação trazida pelas reduções de
juros nos EUA e na Europa, a contenção da crise no Brasil e a tímida reação ensaiada na Ásia se
combinaram para dissipar o pouco entusiasmo que principiava a
se esboçar para fazer algo de sério.
Estamos de volta ao "business as
usual", à exuberância irracional
da Bolsa, ao alegre retorno do
Brasil e de outros latinos à ciranda do endividamento.
Mas será verdade que "a crise
acabou", como declarou Camdessus? Depende obviamente do que
se entende por "crise". A expressão procede, como se sabe, do jargão médico. Significa o momento
da mudança decisiva em que ou a
doença se agrava até o desenlace
fatal ou começa a gradual recuperação a caminho da convalescença e da cura.
Nesse sentido, comparado a sete
meses atrás, quando se temia que
a própria economia americana
podia mergulhar em recessão, desencadeando o estouro de Wall
Street e depressão mundial como
em 1929, o instante atual é de justificado desafogo. O que o diretor
do FMI quer dizer é exatamente
isso: o perigo pior, quem sabe,
passou, e não se vê muita possibilidade de que o contágio da doença continue a se propagar a novas
vítimas. Mesmo porque não sobraram, além da Europa e dos
EUA, muitas outras regiões ainda
por devastar, a não ser talvez China e Índia, preservadas do contágio, como a contragosto reconheceu o Fundo, graças aos controles
de capitais e à prudente recusa em
aceitar a liberalização financeira.
É um pouco como a gripe espanhola: chega uma hora em que
quem não morreu acaba por curar ou não pegou o vírus por estar
imunizado.
Para continuar com a imagem
médica, convém lembrar que é
falso reduzir a apenas duas as alternativas da doença: a morte ou
a cura. Há uma terceira, melhor
que a primeira, mas bem inferior
à última: a enfermidade se transformar de aguda em crônica, sem
perspectiva de desenlace ou de
saúde. É, por exemplo, a triste
condição dos que são obrigados a
viver o resto da vida à custa de pesados coquetéis de medicamentos
ou entrando e saindo da UTI.
Receio muito ser esse o cenário
mais provável que nos espera. Cura de verdade, com efeito, seria a
situação em que a economia e o
comércio mundiais voltassem a
crescer a taxas aceleradas, os preços das matérias-primas (e não só
o petróleo) se recuperassem acentuadamente e as nações em desenvolvimento se expandissem a
velocidade muito superior à das
economias avançadas, reduzindo
assim o fosso da desigualdade entre elas. Ora, não há nenhum indício de que isso venha a ocorrer.
Nem é possível prever se os asiáticos conseguirão algum dia recuperar o desempenho fantástico
que ostentavam antes da crise.
Afinal, a América Latina até hoje
mal logrou alcançar a metade da
taxa de crescimento de que gozava entre 1945 e 1980 (5,5%) e continua com índices de pobreza
(39%) e indigência (17%) significativamente acima dos que apresentava há 20 anos, antes da crise
dos anos 80.
O pior, entretanto, é que as medidas cosméticas que tomaram o
lugar de uma reforma para valer
apenas permitem ganhar tempo
até a próxima crise. É o que dizia
no editorial de segunda-feira o insuspeito "Financial Times": "Manias, pânicos e colapsos constituem a natureza da besta do mercado financeiro. Em algum ponto,
haverá outra crise. A questão é saber se alguma coisa se aprendeu
desta". E prosseguia: "Mas a mensagem da reunião de hoje do G-7
será que, quando a próxima crise
se desencadear, os países pobres
só poderão contar consigo próprios". E, para quem gosta de auto-engano, esta verdade dura e
crua: "Os países ricos não vão fazer coisa nenhuma a respeito de
seus bancos. Trata-se de instituições poderosas demais. Os interesses são demasiadamente enraizados".
Por conseguinte, os mercados
emergentes têm de tomar suas
próprias precauções e "não deve
haver distorções perversas que encorajem perigosos fluxos de capital em curto prazo, em lugar do
mais desejável: empréstimos de
longo prazo (...) e investimento
direto".
Numa advertência brutal, assevera o jornal: "Se o Ocidente não
vai fazer nada para tornar seus
bancos mais seguros, os países em
desenvolvimento devem limitar
sua exposição doméstica, mediante a aplicação de controles a
vulnerabilidades de curto prazo
em moeda estrangeira. A alternativa é vender o setor bancário aos
estrangeiros".
As poucas notícias que me chegam do Brasil, além dos escândalos do Banco Central, dão a impressão de que essa preocupação
sensata, que vai do secretário do
Tesouro americano ao "Financial
Times", é olimpicamente subestimada entre nós. Como se o problema fosse apenas voltar ou não
ao mercado. Aparentemente já esquecemos que a verdadeira questão não é poder levantar novos
empréstimos para pagar os juros
dos antigos, mas indagar se estamos sendo capazes de gerar exportações e excedentes comerciais
que nos permitam no futuro fazer
frente ao serviço dos empréstimos
e manter o déficit corrente em nível moderado, financiável por investimentos diretos.
Com as exportações latino-americanas declinando em 12% no
ano passado e as brasileiras despencando em 15% nos primeiros
três meses deste, só os temerários
de plantão se atreveriam a ignorar o conselho que Fernando Pessoa dirigia a Portugal no fim de
sua "Mensagem" e que bem se
aplica ao Brasil, sucessor e herdeiro do Quinto Império: "Nem rei
nem lei, nem paz nem guerra, (...)
Brilho sem luz e sem arder. / Como o que o fogo-fátuo encerra.
(...) Tudo é disperso, nada é inteiro. / Ó Portugal, hoje és nevoeiro
... É á hora!".
Rubens Ricupero, 62, secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ex-ministro da Fazenda (governo Itamar Franco), é autor de "O
Ponto Ótimo da Crise" (editora Revan). Escreve
aos domingos nesta coluna.
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