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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O mito da independência
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
As divergências de opinião em
torno da independência dos
bancos centrais e das regras
adequadas de gestão monetária
refletem, na verdade, a dupla e
contraditória natureza do dinheiro nas economias capitalistas.
O dinheiro é simultaneamente
um bem público e objeto de enriquecimento privado. Enquanto
"bem público", referência para
os atos de produção e intercâmbio de mercadorias, bem como
para a avaliação da riqueza e
das dívidas, o dinheiro deve estar sujeito a normas de emissão,
circulação e destruição que garantam a reafirmação de sua
universalidade como padrão de
preços, meio de pagamento e reserva de valor.
Numa economia monetária, o
enriquecimento privado só pode
ser buscado mediante a produção de mercadorias ou a posse
de ativos que dão direito a rendimentos futuros. Trata-se de
uma aposta, em condições de incerteza, na possibilidade de essas formas "particulares" de riqueza preservarem o valor no
momento de sua conversão para
a forma "geral", o dinheiro.
Há, por isso, o temor de que,
chegando à transfiguração de
sua riqueza particular em riqueza geral, o proprietário de
ativos ou de mercadorias receba
um dinheiro cujo "prêmio de liquidez" esteja, ele mesmo, "desvalorizado" por práticas "permissivas" de monetização das
dívidas. A política monetária e
os bancos centrais estão, portanto, submetidos a tensões permanentes. Os credores e proprietários da riqueza líquida costumam exigir mais "austeridade"
e os devedores e despossuídos
demandam mais generosidade,
por parte das políticas monetárias. Essas políticas definem, na
verdade, as condições de acesso
à liquidez, o obscuro objeto do
desejo.
As moedas nacionais, no entanto, estão ligadas umas às outras por um sistema de taxas de
câmbio, fixas ou flutuantes. Os
bancos centrais são, em princípio, interdependentes, enquanto gestores de um sistema universal de pagamentos e de liquidez... Isso introduz constrangimentos adicionais e cruciais no
manejo da política monetária.
Ela deve responder ao aumento
ou diminuição das reservas ou
da disponibilidade de crédito na
moeda-padrão, sob pena de perder o controle das flutuações da
taxa de câmbio, ou -no caso de
taxa fixa- da oferta monetária. O descontrole pode culminar numa severa crise de balanço de pagamentos, com colapso
da moeda nacional.
Nas últimas duas décadas, a liberalização, a desregulamentação e a internacionalização dos
mercados financeiros são sintomas das alterações importantes
ocorridas na estrutura da riqueza capitalista e, sobretudo, nas
relações de poder entre as classes proprietárias. Vou enumerá-las, sem a pretensão de ser
exaustivo: 1) o maior peso da riqueza financeira no conjunto da
riqueza capitalista; 2) o poder
crescente dos administradores
privados da massa de riqueza
mobiliária (bancos comerciais,
de investimento, grandes corretoras e agências de avaliação de
risco) na definição das formas
de utilização da riqueza líquida
e do crédito; 3) daí os mercados
financeiros liberalizados assumirem o papel de tribunais, com
pretensões de julgar a qualidade
das políticas econômicas nacionais.
Keynes, no Tratado da Moeda,
adverte que, nesses sistemas
com livre movimentação de capitais, a capacidade do banco
central de manter as condições
de estabilidade interna e, ao
mesmo tempo, sustentar a posição internacional de sua moeda
depende do "poderio" do mercado financeiro doméstico. Ao
realçar a importância do "poderio financeiro" para determinar
a maior ou menor liberdade de
execução das políticas monetárias, Keynes estava apontando
para a existência de hierarquia
entre as moedas nacionais e os
bancos centrais. Pretendia sublinhar que dessa diferença de
poder financeiro nascem importantes diferenças na capacidade
dos bancos centrais nacionais de
atrair recursos "livres" para a
aquisição de ativos e bens denominados na moeda nacional. Isso pode representar uma limitação duríssima nos processos de
ajustamento de balanço de pagamentos para os países de moeda fraca e, portanto, para as políticas nacionais de crescimento
e de emprego.
Keynes, observando as desordens do entre-guerras e a posição subalterna da Grã-Bretanha, foi capaz de perceber e denunciar o componente "político" e o caráter hierarquizado
dos sistemas monetários internacionais fundados no padrão-ouro. As relações de poder do
padrão-ouro estavam soterradas sob as alegações de homogeneidade, impessoalidade e automatismo, próprias dos mitos do
liberalismo econômico. São tais
mistificações que as teses de independência do Banco Central
pretendem ressuscitar, no mundo comandado pelo poder do
dólar.
²
²
Luiz Gonzaga Belluzzo, 55, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de
Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de
Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e
Tecnologia do Estado de São Paulo (governo
Quércia).
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