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LUÍS NASSIF
O brasileirinho Waldir
Meu primeiro ídolo da música instrumental foi Waldir
Azevedo. Devia ter 10 ou 12
anos, quando minha mãe me
presenteou com um LP, no qual
Waldir aparecia sorridente,
abraçado a um cavaquinho
preto, com uma carinha pintada parecendo gente. Junto, ganhei um cavaquinho preto, da
Del Vecchio ou Di Giorgio, não
me lembro, que foi meu primeiro instrumento musical, ao lado de uma gaita Hering.
Quando se falava de música
brasileira de sucesso internacional da época, a relação não
era muito extensa: "Aquarela
do Brasil", de Ari Barroso, "Tico Tico no Fubá" de Zequinha
de Abreu, "Manhã de Carnaval", de Luiz Bonfá, e "Brasileirinho", de Waldir, que estourara uns dez anos antes. Nunca
ouvimos "Rio de Janeiro" do
Ary Barroso, que quase conquistou o Oscar de 1946. Só
mais tarde entrariam na lista
"Garota de Ipanema", de Tom
e Vinicius, "Das Rosas", de Dorival Caymmi, e "Tristeza",
acho que do Niltinho.
Também não me recordo se o
regional do meu tio Léo tocava
"Brasileirinho". Acho que era
muito rápido para o estilo pausado do guitarrista Lazinho,
preto luzidio e tintureiro, ou do
acordeonista Cara de Anjo. O
clarinetista Toninho Beccaro,
solista da Banda do Maestro
Azevedo, era mais chegado nas
valsas.
A rigor, o único cavaquinho
de Poços de Caldas era o João
Doceiro, meu primeiro professor de cavaquinho, mas que tocava na afinação de bandolim,
dificultando a execução de
"Brasileirinho".
De qualquer forma, isso era
problema nosso. Para o que interessava, nosso personagem
era sucesso em todo o Brasil, no
mundo e adjacências. Não havia roda de choro que não executasse Waldir e Dilermando
Reis. Garoto, outro gênio das
quatro cordas, morrera um
pouco antes, mas era cultivado
em círculos muito seletos. Jacob, grande bandolim, só estouraria em Poços (e no Brasil)
em meados dos anos 60, pouco
antes de morrer, quando, com
Elizeth e o Zimbo Trio, gravou
o maior show ao vivo da história da música brasileira.
Mas Waldir não era desses
ortodoxos que nem o Jacob.
Lembro-me até hoje do maior
vexame de minha incipiente
carreira de música, por culpa
de sua heterodoxia.
Do disco que minha mãe me
deu -que tinha de choros,
guarânias a valsas- tirei
"Nancy", música meio no estilo
pilantragem. Certa vez meu tio
convocou os filhos e sobrinhos
para a apresentação anual que
fazia no sanatório de Divinolândia, cidadezinha próxima a
Poços, que ficava encarapitada
em um morro.
Tio Léo tinha uma caminhonetinha Ford que era a figura
mais popular da cidade. Parecia vira-lata de estimação. Outro dia escrevi aqui sobre o
Grupo Gente Nova, e muitos
amigos da época escreveram
reclamando que eu não mencionara o Fordinho, que levava
os alimentos no morro do Serrote. Toda vez, no meio da subida, as caronas tinham que
pular correndo, para empurrá-la antes que o motor morresse.
Um dia um ladrão pouco informado quis roubá-la. Só conseguiu chegar até o rio dos Cachorrinhos, porque da casa do
tio até o rio era ladeira. Lá a
caminhonete empacou de tal
modo, enervou de tal maneira
o raptor apaixonado (porque
só paixão cega para alguém
cismar de roubá-la) que ele a
atirou no rio.
No dia seguinte foi o guincho
içá-la tendo como platéia metade da cidade rezando pela recuperação da nossa relíquia
histórica. A caminhonetinha
saiu humilhada, escorrendo
que nem frango afogado, mas
sobreviveu.
Pois foi nessa caminhonete
que nos aboletamos todos,
umas dez crianças, de 10 a 16
anos, e seguimos para o Sanatório de Dinivolândia.
Primeiro, preparamos uns esquetes -como se dizia-, quadros curtos com piadas óbvias.
Depois, o conjunto do tio Léo
tocou um repertório bonito de
valsas, parte das quais as serestas que ele trouxe do Rio dos
anos 30, de Luiz Peixoto para
cima.
Desculpe, para baixo, porque
acima de Luiz ("no dia em que
apareci no mundo / juntou-se
uma porção de vagabundos")
Peixoto só Deus.
Na parte final, tio Léo resolveu exibir o sobrinho músico e
me chamou ao palco. Fui com
um banjo encerado, reluzente,
afinado também que nem bandolim, que meu pai comprara
de seu primo Joaquim. Como
nunca tinha ensaiado antes,
sugeri a tal da "Nancy".
Os velhos do conjunto me dirigiram olhares aprovadores.
Aí eles começam no ritmo original da música -uma valsa
para lá de dolente- e eu no
ritmo do Waldir -a pilantragem incrementada.
Se tivesse mais experiência,
teria parado e começado de novo. Como não tinha, acho que
terminei o solo dois minutos
antes de terminar o acompanhamento. Na platéia, era um
chiado só, de tísicos tossindo
para sufocar a risada.
Por estes dias, "Brasileirinho" completa 50 anos. Foi isso
que me fez lembrar que, no fim
dos anos 50, naquele país que
mal ensaiava os primeiros vôos
internacionais, Waldir era um
dos símbolos nacionais, motivo
daquele orgulho meio besta,
que os sofisticados chamariam
até de caipira, mas que mantinha acesa a fé no país. Assim
como hoje, quando a política, o
governo e as injustiças teimam
em dizer não, a música de Waldir garantia que sim.
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