São Paulo, domingo, 2 de maio de 1999

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LUÍS NASSIF
O brasileirinho Waldir

Meu primeiro ídolo da música instrumental foi Waldir Azevedo. Devia ter 10 ou 12 anos, quando minha mãe me presenteou com um LP, no qual Waldir aparecia sorridente, abraçado a um cavaquinho preto, com uma carinha pintada parecendo gente. Junto, ganhei um cavaquinho preto, da Del Vecchio ou Di Giorgio, não me lembro, que foi meu primeiro instrumento musical, ao lado de uma gaita Hering.
Quando se falava de música brasileira de sucesso internacional da época, a relação não era muito extensa: "Aquarela do Brasil", de Ari Barroso, "Tico Tico no Fubá" de Zequinha de Abreu, "Manhã de Carnaval", de Luiz Bonfá, e "Brasileirinho", de Waldir, que estourara uns dez anos antes. Nunca ouvimos "Rio de Janeiro" do Ary Barroso, que quase conquistou o Oscar de 1946. Só mais tarde entrariam na lista "Garota de Ipanema", de Tom e Vinicius, "Das Rosas", de Dorival Caymmi, e "Tristeza", acho que do Niltinho.
Também não me recordo se o regional do meu tio Léo tocava "Brasileirinho". Acho que era muito rápido para o estilo pausado do guitarrista Lazinho, preto luzidio e tintureiro, ou do acordeonista Cara de Anjo. O clarinetista Toninho Beccaro, solista da Banda do Maestro Azevedo, era mais chegado nas valsas.
A rigor, o único cavaquinho de Poços de Caldas era o João Doceiro, meu primeiro professor de cavaquinho, mas que tocava na afinação de bandolim, dificultando a execução de "Brasileirinho".
De qualquer forma, isso era problema nosso. Para o que interessava, nosso personagem era sucesso em todo o Brasil, no mundo e adjacências. Não havia roda de choro que não executasse Waldir e Dilermando Reis. Garoto, outro gênio das quatro cordas, morrera um pouco antes, mas era cultivado em círculos muito seletos. Jacob, grande bandolim, só estouraria em Poços (e no Brasil) em meados dos anos 60, pouco antes de morrer, quando, com Elizeth e o Zimbo Trio, gravou o maior show ao vivo da história da música brasileira.
Mas Waldir não era desses ortodoxos que nem o Jacob. Lembro-me até hoje do maior vexame de minha incipiente carreira de música, por culpa de sua heterodoxia.
Do disco que minha mãe me deu -que tinha de choros, guarânias a valsas- tirei "Nancy", música meio no estilo pilantragem. Certa vez meu tio convocou os filhos e sobrinhos para a apresentação anual que fazia no sanatório de Divinolândia, cidadezinha próxima a Poços, que ficava encarapitada em um morro.
Tio Léo tinha uma caminhonetinha Ford que era a figura mais popular da cidade. Parecia vira-lata de estimação. Outro dia escrevi aqui sobre o Grupo Gente Nova, e muitos amigos da época escreveram reclamando que eu não mencionara o Fordinho, que levava os alimentos no morro do Serrote. Toda vez, no meio da subida, as caronas tinham que pular correndo, para empurrá-la antes que o motor morresse.
Um dia um ladrão pouco informado quis roubá-la. Só conseguiu chegar até o rio dos Cachorrinhos, porque da casa do tio até o rio era ladeira. Lá a caminhonete empacou de tal modo, enervou de tal maneira o raptor apaixonado (porque só paixão cega para alguém cismar de roubá-la) que ele a atirou no rio.
No dia seguinte foi o guincho içá-la tendo como platéia metade da cidade rezando pela recuperação da nossa relíquia histórica. A caminhonetinha saiu humilhada, escorrendo que nem frango afogado, mas sobreviveu.
Pois foi nessa caminhonete que nos aboletamos todos, umas dez crianças, de 10 a 16 anos, e seguimos para o Sanatório de Dinivolândia.
Primeiro, preparamos uns esquetes -como se dizia-, quadros curtos com piadas óbvias.
Depois, o conjunto do tio Léo tocou um repertório bonito de valsas, parte das quais as serestas que ele trouxe do Rio dos anos 30, de Luiz Peixoto para cima.
Desculpe, para baixo, porque acima de Luiz ("no dia em que apareci no mundo / juntou-se uma porção de vagabundos") Peixoto só Deus.
Na parte final, tio Léo resolveu exibir o sobrinho músico e me chamou ao palco. Fui com um banjo encerado, reluzente, afinado também que nem bandolim, que meu pai comprara de seu primo Joaquim. Como nunca tinha ensaiado antes, sugeri a tal da "Nancy".
Os velhos do conjunto me dirigiram olhares aprovadores. Aí eles começam no ritmo original da música -uma valsa para lá de dolente- e eu no ritmo do Waldir -a pilantragem incrementada.
Se tivesse mais experiência, teria parado e começado de novo. Como não tinha, acho que terminei o solo dois minutos antes de terminar o acompanhamento. Na platéia, era um chiado só, de tísicos tossindo para sufocar a risada.
Por estes dias, "Brasileirinho" completa 50 anos. Foi isso que me fez lembrar que, no fim dos anos 50, naquele país que mal ensaiava os primeiros vôos internacionais, Waldir era um dos símbolos nacionais, motivo daquele orgulho meio besta, que os sofisticados chamariam até de caipira, mas que mantinha acesa a fé no país. Assim como hoje, quando a política, o governo e as injustiças teimam em dizer não, a música de Waldir garantia que sim.




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